PELO DIREITO DE ERRAR

O Congresso Nacional, por ter sido eleito por vontade popular, tem legitimidade para cassar o mandato da presidente, mas não apenas por vontade dos congressistas.

A recente publicação da conversa entre o senador Romero Jucá e o executivo Sérgio Machado ratifica o que inúmeras pessoas (de todas as camadas sociais e econômicas e das mais diferentes correntes políticas, incluindo a direita), no Brasil e – talvez até mais – no exterior, comentam desde as primeiras iniciativas do grupo de parlamentares e outros interessados para afastarem do cargo a presidente Dilma Rousseff: o que está sendo atingido não é apenas a presidente da República e alguns partidos políticos; mas o sistema democrático em si, a legitimidade e a soberania da vontade popular. Em última instância, são estes fundamentos que estão sendo questionados. Os supostos crimes de responsabilidade da presidente – que, até o momento, não foram comprovados, estão servindo apenas como cortina de fumaça. Há quem defenda que o alvo de toda essa conjuntura sejam o PT e seus aliados históricos; no entanto, o desdobramento de tais manobras está indo muito além: a Democracia é quem está saindo como a grande vítima.

Lamentar, indignar-se, protestar por não conquistar o poder através da vontade popular – e até se opor duramente a quem conseguiu – é perfeitamente normal, legal, legítimo, compreensível e aceitável: foi o que aconteceu com a esquerda brasileira desde que o Brasil é Brasil até 2002, quando um partido realmente popular elege, pela primeira vez, um presidente da República. Para chegar a tal ponto, porém, o caminho foi longo, apertado e cheio de muitos percalços; no entanto, resistiu-se – mesmo não tendo sido fácil em vários momentos – à tentadora proposta da serpente: os vários atalhos, entre eles, a eleição indireta, como acontece no caso em questão. A esquerda chegou ao poder em 2002, mas, sabe Deus a que custo, pela via democrática legítima: o voto popular.

No poder, o PT e alguns dos seus aliados cometeram crimes graves – a imprensa, a Justiça e até os postes das ruas já deixaram isso muito claro. Vários desses criminosos têm sido punidos – a meu ver, a despeito das pressões populares e de vários setores organizados da sociedade, além da oposição (fundamentais no processo), se não por iniciativa, com o aval do Governo que, segundo membros do próprio Ministério Público, tem se mostrado o oposto de seus antecessores no que respeita a apoio à investigação de crimes de corrupção na vida pública.

Está claro (e já estava à época) que a presidente Dilma, quando candidata à reeleição em 2014, omitiu informações – ou pelo menos deixou de reconhecê-las publicamente – comprometedoras sobre a economia do país. Também já ficou mais do que evidente que dinheiro de origem espúria financiou sua campanha – e a de todos os candidatos que têm influência suficiente para acessarem tais recursos, independentemente de filiação partidária e de estarem cientes ou não de sua verdadeira origem. Integrantes (diretos e aliados) do Governo Federal usaram e abusaram de sua influência para se enriquecer e aparelharem partidos políticos a custas do erário público. Isso também está claro. Tudo deve ser apurado, e os responsáveis devem ser punidos. Creio ser isso consenso entre os cidadãos desse país.

Nada disso, ou tudo isso junto, embora imoral e escandaloso, tira a legitimidade do mandato de uma representante que foi eleita, em eleições livres e diretas, pela maioria de seus pares, os eleitores: essa é a soberania do regime democrático escolhido pelos brasileiros e consignado na Constituição Federal de seu país. E é isso, não apenas o mandato de uma presidente que se desgastou politicamente, tem pouca habilidade pra construir alianças ou falseou o discurso para ser reeleita, que está em jogo. É esse vínculo institucional que está sendo rompido. O Congresso Nacional, por ter sido, também, eleito por vontade popular, tem legitimidade para cassar o mandato da presidente, mas não apenas por vontade dos congressistas. Nesse aspecto, a vontade e o voto do representante são bem diferentes da vontade e do voto do representado. No caso do voto do cidadão comum, sua vontade pura e simplesmente tem a última palavra – não há necessidade de justificativa ou amparo legal para o eleitor escolher (ou rejeitar) esse o aquele candidato. Como assegura a Constituição, sua vontade é soberana. Já o congressista, nesse caso, por maior que seja sua ojeriza ao presidente eleito, seu voto carece, impreterivelmente, de um amparo legal; não vale a famosa alegação “eu fiz o que a minha consciência mandou”.

Nesse contexto, não é a consciência, o coração, o amor à família e/ou à pátria, etc., que determina... a questão deixa de ser política e passa a ser jurídica. Não havendo elementos comprobatórios de crime, não há como fugir: trata-se de uma ruptura institucional, de um atentado à Constituição Federal e, o que é mais grave, à soberania do povo. O nome mais comum pra tal ruptura é golpe. Não se está empregando força de armas; mas se está usando uma força mais violenta, mais virulenta e mais letal: a força do conhecimento e da capacidade humana de manipular, de dissimular, de dissuadir, de tramar e de conspirar para obter vantagem própria....Isso nos coloca em posição inferior aos nossos meio-pares chamados irracionais. Estes também usam de sua força física e astúcia para defender interesses próprios; porém o fazem dentro de um limite: o suficiente para garantirem sua sobrevivência, não [como nossa espécie] por simples e pura vaidade, apenas para esbanjar poder e/ou para humilhar os desafetos...tal postura causa repulsa. Falando sobre a necessidade de resistirmos a tais tendências naturais, Mário Sergio Cortella diz que precisamos “desencantar o maléfico”.

A Constituição Federal é clara como os “raios fúlgidos do sol da liberdade” e “límpida como o céu risonho” do nosso Hino Nacional: na escolha dos representantes, deve prevalecer a vontade da maioria. O texto constitucional não diz que “deve prevalecer a vontade da maioria se o eleito continuar sendo popular ou se não contrariar os interesses de integrantes dos outros poderes, por exemplo”.

O povo tem o direito de errar – não sou eu, é a Constituição quem lhe assegura isso. Foi um erro reeleger Dilma? Pra mim, que votei nela, não; foi apenas uma questão de preferência. No entanto, mesmo para os que consideram isso a maior burrice da história da humanidade, não há pressuposto legal (e, muito menos, moral) para retirá-la do mandato através de manobras tão escancarada e escandalosamente golpistas.

Aqueles que (tendo ou não votado nela) se sentem enganados e traídos pela presidente têm todo o direito (e o dever) de se indignar, protestar e se opor ao governo dela. Num sistema que evoca pra si o título de democrático, o caminho, no entanto, para reverter tal situação tem que ser, obrigatoriamente, a eleição direta.

Na Democracia, o povo tem que ter sempre a palavra final quando o assunto é escolha de seus governantes, mesmo que seja pra escolher errado. O próprio povo, quando entender que tal governante não lhe representa mais, optará por outro – foi o que, aliás, aconteceu com os representantes da direita que, após mais de 500 anos no poder, em 2002, foram substituídos (no poder central) pelos da esquerda...simples assim.

Uma das conclusões que se pode tirar de tudo isso é que a direita não está, de fato, convencida de que os governos do PT tenham se tornado tão impopulares. Se o tivesse, apenas trabalharia para capitalizar a seu favor tal impopularidade, pavimentando, assim, seu caminho para assumir, de forma legítima, o governo central em 2018 – que, convenhamos, não está tão distante –, sem submeter o país a esse alvoroço todo e se expor a tamanho desgaste, o que arrisca, diga-se de passagem, tornar o PT e seus aliados mais fortes ainda nas próximas eleições.