A senhora setentona está morrendo

Ela é uma verdadeira instituição por conta de sua idade, experiência, conhecimentos e contatos com muitas pessoas, empresas etc. Nasceu com problemas de visão, talvez um glaucoma hereditário que a faz ficar cada vez mais cega. Tem uma pequena balança para medir os outros pela sua própria justeza, o que nem sempre se traduz no seu lema principal que seria dar ao outro o que lhe é devido... Usa uma espada pra se defender e para atacar quem não concorde com seus pontos de vista ou, ainda, para amedrontar àqueles que lhe desejem molestar.
 
Seus planos de vida eram cheios de boas intenções. Mas o tempo e a convivência com todo tipo de pessoas lhe foi minando a consciência, lhe deixando vulnerável a atitudes impensadas. Ninguém é perfeito, é fato! Resta a quem lhe procurar, se encontrar, tentar tirar o melhor proveito de seus ensinamentos e história de vida.
 
Ela hoje atua em várias frentes e ramos de conhecimento, cheia de boas intenções. E mesmo quando se envolve com assuntos desprezíveis, consegue justificar suas atitudes. Fala como uma tagarela atabalhoada, que pouco se aprofunda nas queixas que lhe chegam, mas sabe dizer onde você pode encontrar um bom profissional do ramo para te auxiliar. Quando te abraça o faz como aqueles terapeutas ocupacionais: percebe tuas mazelas, mas não têm autonomia para te interditar de vez e te mantém morto-vivo; te deixa seguir o caminho que você mesmo traçar. Faz um excelente serviço de conexões com outras áreas de conhecimento, serviço social, rede social, conversa com imprensa, mas não consegue desenvolver um diálogo franco e direto com os filhos e netos, porque a linguagem obsoleta que usa afasta qualquer tipo de comunicação.
 
Ela tem depressão, mas não assume. Nem reconhece nos familiares os traços da disfunção. Acaba metendo os pés pelas mãos e dá presentes caros a parentes ou enteados que pouco fazem por ela, causando ciúmes naqueles que cuidam de seus móveis velhos, cobertores rasgados, colchões furados. A doença das costas ela quase não cita a desconhecidos, prefere se calar e resmungar pelos cantos, com medo de que lhe aposentem, pois o tempo de afastamento da vida normal já se foi faz tempo. Os mais íntimos lhe fazem uma massagem, lhe acompanham às consultas periódicas, conseguem manter a dor de coluna sob controle. Mas as queixas aparecem, de uma forma ou de outra. Para disfarçar o cansaço da vida, ela faz festas, convida filhos de autoridades para organizar eventos caríssimos, dá presentes valiosos a quem acabou de conhecer.
 
Ela era muito rica, tinha empregados para todas as atividades. Eram motoristas, porteiros, copeiros, jardineiros, cozinheiros, lavadeiras, seguranças... Hoje em dia ela subcontrata pessoas para exercerem atividades diversas, com um salário miserável. Mas mantém a pose de outrora, vive cercada de asseclas que lhe protegem em troca de promessas de heranças. Tudo o que ela precisava, na idade em que se encontra, é de uma boa clínica de repouso, dar o lugar para quem pudesse dar conta das responsabilidades. Mas a arrogância e pedantismo não lhe permitem usar do bom senso, pegar a balancinha e pesar o que vale e o que não importa mais...
 
O medo da solidão lhe faz pagar caras bonificações a quem precisa ir embora, convence a ficar mais um pouco, e vai dando presentinhos, docinhos escondidos, mimos diversos. Acaba conseguindo umas amizades por interesse mas, a idade e a candura de sua aparência também atraem afetos verdadeiros. Quem precisa, realmente, partir, deixa alguém pra fazer companhia à velhinha gagá, e devolve parte dos presentes para que a setentona compre carinho e afeto do novo pupilo.
 
Vai chegar uma hora que ela vai se apagar, literalmente, e ninguém poderá lhe substituir, pois ela não preparou sucessores. Dizem que é uma boa notícia, outros acham que será um desastre. O futuro não pode ser profetizado, então, tudo o que resta é esperar o velório e jogar areia na cara da morta.
 
* Valdeck Almeida de Jesus é escritor, poeta, jornalista e ativista cultural.
 

Fonte:
http://galinhapulando.blogspot.com.br/2016/04/a-senhora-setentona-esta-morrendo.html

http://www.iteia.org.br/jornal/a-senhora-setentona-esta-morrendo
Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 01/04/2016
Reeditado em 01/04/2016
Código do texto: T5591629
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