O DIREITO AO DELÍRIO

Que momento apreensivo, conturbado, delicado e importante vive nosso país!

Crise econômica, crise política, crise moral, crime, corrupção, alianças, cinismo, manobras, interesses, delações, manifestações, indignação...

Diante de tanta incerteza, agravada pela carência de líderes confiáveis e inspiradores, o que nos resta é acompanhar tudo de perto, estando atentos àquilo que nos cabe como força coletiva e, não menos importante, àquilo que nos cabe individualmente por meio das próprias atitudes em nossas rotinas diárias.

Fora isso, por favor, ‘continuemos a delirar a fim de continuarmos a caminhada!’ Eu explico:

“A utopia está no horizonte. Você caminha um passo, e a utopia caminha um passo. Você caminha dois passos e ela vai mais dois passos. Você pode até correr cem passos. A utopia vai correr de você cem passos. Então, para que raios serve a utopia? A utopia serve para nos fazer caminhar.” Fernando Birri

Pertinente ao nosso momento atual, acompanhe abaixo uma parte traduzida do magnífico poema “El derecho al delírio” (O direito ao delírio) por Eduardo Galeano*:

“O que acham de delirarmos um pouquinho? O que acham de fixarmos nossos olhos mais além da infâmia, para imaginarmos outro mundo possível?

- O ar das ruas, limpo de todo o veneno que não venha dos medos e das paixões humanas;

– As pessoas não mais dirigidas pelos carros, nem programadas pelo computador, nem compradas por supermercados, nem também assistidas pela TV;

– A TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como um ferro de passar ou máquina de lavar roupa;

– Será incorporado aos códigos penais o crime de estupidez para aqueles que cometem: viver para ter ou para ganhar ao invés de viver para viver simplesmente, assim como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;

– Ninguém viverá para trabalhar, todos trabalharão para viver;

– Os economistas não chamarão mais o nível de vida de nível de consumo e nem chamarão de qualidade de vida a quantidade de coisas acumuladas;

– Os cozinheiros não mais acreditarão que as lagostas amam ser fervidas vivas;

– Os políticos que os pobres adoram comer promessas;

– A morte e o dinheiro perderão seus poderes mágicos e nem por falecimento e nem por fortuna um canalha se tornará um virtuoso cavalheiro;

– Ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo;

– O mundo não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá escolha a não ser declarar falência;

– A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das escrituras de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo com amor e respeito, a igreja também realizará outro mandamento “que Deus havia esquecido”: “Amarás a natureza da qual fazes parte”;

– Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;

– Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de esperar muito, muitos e se perderam de tanto procurar;

– Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, que tenham nascido quando tenham e tenham vivido quando e onde vivido, sem se importarem nem um pouquinho com as fronteiras do mapa e ou do tempo,

– A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direito humano;... continua”

Enfim, façamos como os manifestantes espanhóis que costumam se dirigir aos seus governantes dizendo:

“Nos deixem sonhar, ou não os deixaremos dormir”.

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*Eduardo Hughes Galeano foi um jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, traduzidos em diversos idiomas. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História. Wikipédia

Inês Coelho e Eduardo Galeano
Enviado por Inês Coelho em 22/03/2016
Código do texto: T5581877
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