ÉTICA E LEGALIDADE NO IMPEACHMENT DE DILMA

Com o caso de impeachment ocorrendo na esfera do legislativo, e não do judiciário, há espaço para uma arbitrariedade por partes diretamente interessadas. Por exemplo, as pedaladas fiscais são condenadas na Lei de Responsabilidade Fiscal (e evidenciadas pelo Tribunal de Contas da União, que é orgão auxiliar ao legislativo), mas, tendo o presidente um contexto político favorável – ampla maioria no Congresso, uma base aliada alinhada –, um processo de impeachment nunca seria instaurado, e aquilo que é uma ilicitude (contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal) nunca seria punido [1]. Isso abre espaço para medidas arbitrárias por parte do legislativo, que pode derrubar presidentes quando achar a oportunidade e isso lhe for conveniente. Esse é o caso hoje, em que, exceto pelas pedaladas fiscais e os decretos [2], não há outra acusação de base legalmente sólida para o impeachment de Dilma Rousseff [3]. O PMDB tem maioria na Câmara, tem o cargo de vice-presidente (Temer, que assumirá se Dilma cair), tem o presidente do Senado (Renan Calheiros) e o da Câmara (Eduardo Cunha). Ele – e outros partidos expressamente de oposição – é diretamente interessado na queda de Dilma [4]. Se a decisão sobre a abertura ou outra etapa do processo do impeachment fosse do STF, ao menos em uma etapa do processo haveria um orgão sem interesse tão direto a julgar a causa [5].

Dentro desse processo, que pode correr com absoluta legalidade, há de se questionar quanto a sua ética e implicações para a democracia.

Quando Dilma nomeia Lula como Ministro, algo análogo existe aí. Ela se utiliza de um artifício legal para livrar Lula de certo caminho específico do processo, ou seja, para que sua investigação corra sob o STF. A decisão de Dilma é condenável moralmente, mas é perigoso se referir a isso como se fosse um ilegalidade e repudiá-lo por artifícios legais ("obstrução da justiça") [6]. Os autores do pedido de impeachment e membros da Câmara e do Senado e seus respectivos partidos pró-impeachment, que declaram estar buscando esse objetivo por uma suposta ética, estão agindo da mesma forma: dentro da lei, mas de forma eticamente condenável. (Estariam eles "obstruindo a democracia"?) Como apoiar uma atitude desse tipo em nome somente de interesses próprios – tomar o poder a qualquer custo? Condenar uma atitude e fazer algo análogo? Se Dilma tinha alguma chance de uma atitude ética e deixar as investigações correrem no caminho em que estavam, sua atitude seria não conferir foro privilegiado a Lula. Para os deputados e senadores, a atitude correta seria esperar evidências adequadas (a qualquer época) contra Dilma para tirá-la do poder, e não usar uma desculpa (em um contexto tão específico de disputa de poder); ou essas ilustríssimas pessoas resolveram, de uma hora para outra, estabelecer a ética quanto aos crimes de responsabilidade?

É uma questão sobretudo ética, não legal. À luz da uma regra pura, poderia-se atropelar de propósito alguém que por descuido remanesceu no meio da faixa de pedestres quando o sinal abriu. Parece-me legal o impeachment tanto quanto parece dentro da lei a nomeação de Lula como ministro. Mas são atitudes corretas a se tomar?

[1] Pedaladas fiscais que, amplamente condenáveis, também foram cometidas por FHC e Lula, mas não foram alvo de qualquer pedido de impeachment. http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/cunha-lima-diz-que-como-dilma-fhc-fez-pedaladas-fiscais

[2] Decretos feitos pela Presidência (assinado tanto por Temer quanto por Dilma) sem autorização prévia do Congresso para cumprir a meta das Lei de Diretrizes Orçamentárias. Dispositivos condenáveis tanto legal quanto eticamente.

[3] A outra acusação seria quanto a suposta negligência de Dilma em relação à corrupção na Petrobrás, o que não configura, pelo menos até agora, nada sólido.

[4] Eduardo Cunha, pmdebista presidente da Câmara, além de tudo é réu em processo já instaurado. Um pedido por seu impedimento para decidir ou não sobre aceitação do pedido de abertura do impeachment foi rejeitado pelo STF, com a justificativa de que os impedimentos que se aplicam a juízes não são os mesmo para esse caso.

[5] Quando o processo vai para o Senado, o presidente do STF somente preside a sessão. O STF já interferiu, mas em relação a questões processuais – o rito a ser seguido, p. ex.

[6] Os argumentos a favor ou contra se revestem de intenções legalistas, no caso da defesa, diz que não há impedimento legal de Lula assumir um cargo uma vez que não é acusado de nada, já os opositores dizem que isso seria obstrução de justiça e recorrem à Convenção da ONU, ainda que sua defesa seja baseada em uma asserção puramente subjetiva (a qual concordo, de que Lula aceitou o cargo somente pelo Foro privilegiado). http://www.financista.com.br/noticias/jota-nomeacao-de-lula-como-ministro-e-vista-como-obstrucao-da-justica-e-violacao-de-convencao-da-onu