O mal está em você.
Lethe era um rio mítico que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Quem o atravessava esquecia tudo o que deixara para trás. Se Lethe quer dizer “esquecer”, então “Alethéia” quer dizer retirar o véu que cobre a memória e apaga a lembrança, logo, retirar a verdade das águas do esquecimento, ou seja, não sucumbir aos feitiços do rio Lethe e não esquecer.
"Acorda Alemanha", disseram um dia, esperando que, com este levantar-se, ela caísse no mais profundo sono. E caiu. E sonhou a justiça mesmo praticando a iniquidade, e sonhou a liberdade mesmo prendendo e matando. Atravessou o rio Lethe e julgou ter acordado quando, de fato, dormia. Talvez este seja um efeito não mencionado ainda acerca desta travessia.
E o resultado desta travessia foi que procuraram e encontraram a encarnação do mal. E, veja, este mal estava ali, bem à frente, ao alcance das mãos ávidas de purificação. Para tornar o território alemão Judenfrei (livre de judeus), primeiro pensaram em mandar este “mal” para os confins do deserto africano (já que não podiam mandá-los para Cuba), mas, este deserto era muito longe e, tal empreitada seria muito cara e operacionalmente inviável. Então, inventaram a solução final. E, de novo, não se pode esquecer, tudo sedimentado em um ordenamento jurídico e legal.
O que estamos assistindo hoje é a reedição terrível desta tendência de alguns a colimar a sua visada em alguém ou em um grupo e sentenciar: “este é o mal, o mal absoluto”. Identifica-se, assim, o mal que deve ser erradicado da face da terra para que volte a reinar a paz e a tranquilidade, no nosso caso, para que a corrupção seja evaporada.
Se passa como se o mal que se escolheu atacar (a corrupção) estivesse na carne daquele sujeito ou daquele povo, grudada nele, entranhada em sua medula e lá, somente lá, fiat lux, do nada, temporalmente situado, sem antes ou depois.
O irônico é que este mal sempre esteve entre eles e com eles, inclusive com o seus, mas nunca fora tão definitivo combatê-lo, pois nunca fora tão visível e importante como agora em que, nesta miragem, ele aparece somente do outro lado.
O que leva pessoas de bem a agir assim?
É simples. Basta fazê-los esquecer de sua condição humana, de sua capacidade em se apiedar da dor do outro, embrutecê-los, fazê-los lembrar a todo instante (falsa memória) que o mal existe bem perto e deve ser enfrentado, que sua vida mudou para pior por causa deste mal. E aí, busca-se “provas”. “Veja como o nariz dele é torto, veja como suas orelhas abanam, veja seu olhar é meticuloso e frio...., veja, ele gosta de cachaça, veja ele tem carro, veja ele tem barco pedalinho,... veja, veja, veja. Veja como enriquece rápido e propaga a fome...” E por aí vai. Campanha massiva de informação e contra informação, naturalização de valores e hábitos de exceção como regra básica de sobrevivência. Grito coletivo que desfaz a personalidade e a dilui no coro...memória seletiva...isto é assim, isto é assado ...e por aí vai...
Abenon Menegassi
6 de março às 11:12 · São Paulo ·