Complexo de vira-latas
Como paulistano convicto gosto de caminhar pela cidade conseguindo ver lampejos de sua antiga poesia timidamente escondida no vai e vem frenético de pessoas que passam olhando para o chão demostrando em passos apressados o temor provocado pela crescente crise imposta ao país. Recessão, corrupção, prisões, inflação, impostos, sucateamento da educação, saúde ladeira abaixo, violência, entre outras, são notícias diariamente publicadas que contribuem para o crescimento da nuvem escura que inibe pensamentos positivos gerando uma sensação de total impotência diante dos escândalos que se sucedem geometricamente no país. Certamente você conhece a frase do autor e jornalista Nelson Rodrigues (1912-1980) que, tricolor fanático, se servia do futebol para explicar as mazelas e vícios ocultos da sociedade da época. Em suas crônicas diárias ele justificava a frase conhecida pelo fato de que jogadores famosos da seleção nacional tremiam na hora dos jogos decisivos gerando nas derrotas um sentimento de decepção e inferioridade que alcançava todo o país. Para ele “o problema do escrete canarinho não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo”. Assim, “complexo de vira-latas” é sinônimo da sensação de inferioridade do brasileiro em relação ao resto do mundo. Lembro-me bem, ainda criança, da explicação da minha avó que do alto da sua sabedoria italiana sentenciava: - “a causa da derrota da seleção foi a nossa fraqueza física frente aos jogadores estrangeiros que são maiores e mais bem alimentados”. Discordo totalmente. Craques como Messi e Neymar seriam então perdedores? Seguindo. Você pode estar perguntando: - “E o que isso tem a ver com o atual momento político”? Explico. A história mostra a democracia como o governo em que o povo exerce sua soberania elegendo seus dirigentes por meio de eleições periódicas. Logo o desenvolvimento de nações democráticas está ligado a governantes que possuam a forma de sentir, pensar e agir daqueles que os elegeram. A regra é simples: eleitores e eleitos precisam ter objetivos comuns. É ai que mora o perigo. Somos reféns de uma cultura que mescla o tradicionalismo com o imediatismo tendo por base o superficialismo. Assim, jogadores acusados de covardia depois da derrota de 50, eram endeusados pela imprensa e considerados heróis à véspera da decisão. Esse mecanismo de notícias que moldam pensamentos coletivos deixou em segundo plano a discussão sobre a ausência de um planejamento criterioso que envolvesse metodologia avançada para alcançar resultados. Essa tendência de potencializar mais os efeitos em detrimento das causas é traço cultural que vai além do exemplo citado. Em minhas andanças pela metrópole busco conversar com todos os que dispõem de algum tempo ou interesse em falar sobre o atual quadro econômico e político vivido pelo país. É o meu lado acadêmico, voltado para a pesquisa, coisa que nunca perdi. Logo pela manhã ao cumprimentar o porteiro do prédio ouvi suas constantes reclamações sobre os aumentos de preços, que logo encontra eco na fala do morador vizinho que se aproxima dizendo que a inflação está acabando com a economia do país. Exponho minha apreensão do que pode vir a piorar com a manutenção da atual politica econômica, fato que acaba desembocando na questão do impeachment da presidente. Escuto dos interlocutores: - “o problema é que não temos ninguém melhor. Todos os outros são corruptos”. Fico quieto. Durante o almoço, escuto do casal da mesa ao lado que o país está ficando difícil de viver, falam dos aumentos das mensalidades escolares e dos planos de saúde. Sinto vontade de viver no exterior, diz a mulher. Com nosso dinheiro desvalorizado ficou impossível, diz o homem. Já na sobremesa, segurando minha vontade de conversar com o casal, escuto do garçom: - “a coisa ainda vai piorar muito”. Peço a conta e puxo conversa com o garçom sobre a crise. Insinuo se a politica econômica não pode estar errada e se o governo tem condição de resolver a crise. Ele repete o mesmo mantra: - “trocar a presidente não resolve nada”. E arremata categórico: - “Pode escrever doutor, o vice é ainda pior”. Saio do restaurante com saudade da velha máxima do futebol de que a melhor solução para um time que segue perdendo é a troca do técnico. À tarde, passo pela farmácia do bairro para comprar um calmante e escuto o vendedor dizendo que o comercio está às moscas, que o país vai de mal a pior, etc. Falamos sobre a crise que inibe as compras e tento mais uma vez levar a conversa para as causas que conduziram a recessão. Escuto novamente: - “a corrupção está em todos os poderes. Em todos os partidos. Até na oposição”. Tento argumentar que o partido que está no poder a quatorze anos se elegeu prometendo acabar com a corrupção, defender nossos interesses, melhorar as condições de vida da população. Não funciona. Novamente a fala: - “a presidente é a menos culpada. Ela pouco pode fazer, pois os políticos não deixam”. Ah! Agora entendi, ela não é política!!!. Voltando para casa vou pensando que ainda temos enraizado um legado cultural que resultou na formação de uma mentalidade nacional, ora emotiva, ora imediatista, porém, sempre superficial. Nesse ultimo adjetivo reside o problema de lermos, ouvirmos e repassarmos acontecimentos sobre o país sem nos aprofundarmos no entendimento da notícia o que só seria possível por meio de leitura criteriosa e atenta à mensagem contida no texto que, obviamente, demandaria uma educação de qualidade, quesito inexistente na dita “pátria educadora”. Retorno a minha avó, majestosamente sentada na sua poltrona favorita, lendo pausadamente somente as manchetes dos jornais enquanto os demais familiares alheios aos acontecimentos ouvem as informações da matriarca e o que é mais grave, reproduzem ipsis litteris sua fala para todos os outros que ali chegavam. Que o Brasil vive uma crise ética, política e econômica todos sabem. Que essa crise atingi a maioria da população, também sabemos. Então, como resolver a questão? O governo pede o apoio de todos para solucionar a crise. Para haver apoio tem que haver transparência. Há? Tem que existir confiança. Existe? Na solução desse imbróglio poucos atentam para a fundamental necessidade de considerar a competência governamental no encaminhamento de soluções para debelar a crise. Digo competência no sentido de liderança política, credibilidade institucional, eficiência na condução das medidas e conhecimento da realidade do país. A democracia pressupõe que governantes compreendam e falem a língua da nação. Nessa direção, sobram perguntas. Quais os critérios do governo na formulação das medidas propostas? Quais os currículos e a linha de pensamento dos responsáveis pela área econômica? Apresentam notório saber sobre o assunto? Possuem publicações sobre o tema? Conhecem a realidade do país? São perguntas que também devemos fazer a todos nós, afinal, votamos neles. O brasileiro precisa se convencer da necessidade de ter participação efetiva na vida política do país. É a tal de cidadania responsável. O requisito primeiro de competência no exercício da cidadania implica em um processo criterioso do eleitor na escolha dos elegíveis, fato que pressupõe atenção na interpretação das notícias lidas, faladas ou ouvidas visando um melhor posicionamento crítico. É preciso ser bem informado. Compreender nossa condição de corresponsável pelo momento difícil que o país atravessa, assim como pensar medidas para solucionar a crise é dever de todos. O que não devemos fazer é ficar imobilizados ao sabor do vai e vem de ondas que destroem o que restou de nossa credibilidade, repetindo mantras de que não há responsáveis pelo desastre econômico, que todos os políticos são corruptos, que não há saídas possíveis, sob o risco de aceitarmos definitivamente nossa incapacidade de influir na condução do destino da nação eternizando ainda mais o simbolismo da frase fatídica do jornalista. Que tal darmos um basta a cultura da subserviência e substituirmos o “complexo de vira-latas” pelo "complexo de virar a mesa"?