SOMOS SERES MANIPULÁVEIS

 
Debrucei-me sobre o escrito do humanista e filósofo francês, Étienne de La Boétie (1530-1563), intitulado “Discurso da Servidão Voluntária”, citado por frei Betto, em entrevista no jornal Folha de São Paulo, (seção Poder, de 09/08/2015).  É ele (Étienne) considerado um dos maiores pensadores do século XVI, nada obstante seu falecimento precoce, aos trinta e três anos de idade. 

Voluntária ou involuntária, a “servidão” é um tema que chega aos nossos dias.  Nós, brasileiros, a entendemos sob todos os aspectos, porque, lamentavelmente, serviu de alicerce para a construção de nosso país.  Aqui experimentamos a servidão:

dos indígenas ora aprisionados (quando não dizimados), ora entregues aos desígnios dos invasores em troca de espelhos e outras bugigangas;

do negro africano – trazido acorrentado ou iludido pelas benesses de um novo éden nas terras invadidas;

dos degredados – que, marginalizados, não tinham recursos para aqui manter-se independentes, nem faziam jus a terra para o cultivo de lavouras, tampouco foram aceitos como mercadoria escrava (muitos adoeceram e morreram à míngua, outros retornaram às prisões de origem).

Mas Étienne se refere mais à servidão voluntária, isto é, o trabalho desenvolvido por uma minoria dominadora, a serviço do rei, para mudar a personalidade de um indivíduo até o absurdo de ele assumir totalmente a personalidade do seu opressor, no caso a do rei.  Como um fantoche, se o rei ordenar “mate!”, o servo voluntário, fanatizado, o fará sem remorso.

Simples.  Tudo começa com um “desinteressado” convite:  para uma festa, um culto, um jantar, um passeio, uma passeata...  Nesse encontro, alguma mensagem profunda, verídica ou não, é passada para o convidado assimilar.  É exatamente a partir daí que o opressor (ou influenciador) penetra no campo de liberdade do influenciado (o ilustre e festejado convidado).  Alguns dias depois, um novo convite com expressões do tipo: “gostou?”;  “veja que o rei quer você mais perto dele!”;  “não desperdice essa oportunidade!”; “eu já fiz a minha parte, o resto é com você”... 
          

O indivíduo, mais em respeito ao rei, mesmo sem convite, vai a um segundo encontro, a um terceiro, a um enésimo...  Cada vez, por conta de mensagens mais contundentes, seu campo de liberdade vai diminuindo. Nada diferente da hodierna imprensa escrita e televisiva.  Essa obediência consentida, pouco a pouco, se transforma em obrigação ou devoção cega.  O indivíduo, que será punido se desobedecer às regras estabelecidas, não percebe sua metamorfose num ser oprimido, ou servo, ou fanático, ou num “maria vai com as outras”...  Não luta mais por uma causa sadia, sua, de sua classe, de sua categoria, mas pela causa malévola do seu pequeno e novel grupo dominador.  Vira um outro ser, sem dever, sem prazer,  semeador do ódio repassado ou ditado por aquele que ocupou todo o seu campo de liberdade e lhe sugou totalmente a personalidade.
   

Esse processo fanatizador, invisível, ainda vige na política, na religião, na ideologia, no narcotráfico..., todos, hoje, grandes beneficiários dos recursos tecnológicos, especialmente da Internet.

Ilustremos:

1 -     um “líder” informa, via Internet, que a transeunte de cabelo vermelho, na rua tal, é uma ladra de bebês.  Com base nessa “verdade”, um grupo de fanáticos, obediente, lincha, no mesmo instante, a uma pobre mãe inocente;

2 -     também cumprindo ordens via Internet, nos protestos de junho/2014, em São Paulo, vândalos destroem lojas, queimam carros e atiram bomba contra um repórter, que veio a falecer.  Ordens comandadas pelo pequeno grupo dominador, enfurnado e protegido em suas mansões.

Étienne, há quatro séculos e meio, nos alerta para esses riscos, assimiláveis pela mente humana e que tornam os indivíduos – de uma arena, de uma cidade, de um país – subservientes e reféns dos grupos minoritários dominadores.  Reféns, sim, fanatizados, descrentes do seu valor individual e cegos para com a sua realidade e a do seu irmão, do seu ambiente e da sua história.  Responderão em uníssono, com certeza, ao “lavabo manibus meam” daquele seu opressor – quase sempre um Pilatos. Responderão que crucifique a um inocente e deixe livres os malfeitores, na história representados por Barrabás.

Étienne observou o quanto o poder opressivo multiplica a sua força quando consegue a obediência consentida dos oprimidos.  Seus estudos e reflexões profundas acerca da condição humana – coincidentemente à época em que os portugueses dizimavam milhares de índios no Brasil, a fim de ocupar suas terras – lhe levam a afirmar que são os próprios seres humanos que se deixam dominar, sem analisar, a princípio, as consequências da tirania bem vestida e sorridente que caracteriza os pequenos grupos dominadores.    Como filósofo, sugere caminhos (difíceis) para que os humanos se organizem e recuperem sua liberdade sem recorrer à violência. 
          Tomara que os oprimidos despertem!