Zona cinzenta

ABENON MENEGASSI

O cínico que serve voluntariamente no sonderkommand geral em que se tornaram as instituições neoliberais se sente confortável e confiante quando encaminha uma situação segundo a norma jurídica. “Cumpri a lei”, diz ele sentindo-se um colaborador zeloso por seu trabalho sujo e vai ao shopping ou ao cinema ... com a família.

Ao camuflar a discrepância que existe entre o que realmente faz (banalização do mal) e o que pensa que está fazendo (cumprindo a lei), omite-se de se perguntar, dissimulando, sobre a dimensão ética de seu ato. Para ele, a normatividade jurídica supõe já, indissociavelmente, o encaminhamento de uma resolução ética. Segundo Agambem em “O que resta de Auschwitz”, pág. 35., este é o emblema da “zona cinzenta” “...que não conhece tempo e está em todos os lugares”.

A contaminação que o direito imprime às zonas de responsabilidades cria uma região de não responsabilidades. O cínico sabe bem disso. A fusão que ele faz entre essas categorias éticas e jurídicas rendem-lhe dividendos e ele se aproveita dela; depois sorri sem remorsos como fascista que é. É que a torção ou inversão que faz assim tem um propósito secreto que sua alma ascética abriga: advogar em causa própria, do próprio gozo.

Com este único objetivo, primeiro ele emite um juízo de valor dirigido ao outro. Depois, para escapar de ter que responder (responsabilidade) eticamente perante este outro, criminosamente ele afirma a lei. Mesmo negando ou não reconhecendo em si mesmo tal propensão e tal julgamento.

Na verdade ele até mesmo afirma perante si e aos demais todos os valores morais e os direitos humanos que são compartilhados socialmente. Faz isso, mas os nega em seguida em sua prática bestial já que não pode furtar-se ao seu carreirismo mercenário.

A desfiguração que faz consiste, portanto, em, sob a máscara do “isto é o melhor a ser feito”, tecer um julgamento moral intimo acerca do outro ignorando ou não, segundo a conveniência do momento, a Lei para, em seguida, afirmá-la segundo sua ação for efetiva para protegê-lo dela mesma e de seu compromisso ético abandonado irredutível a ela. É muito comum vê-lo a balançar a bandeira inscrita com o ditado: “conduta legal não se discute.”

O que resta às vitimas dessas monstruosidades, muitas vezes cometidas por homens comuns, é a angústia do silêncio, deserto aberto pela dor que não pode ser nomeada. Para Agambem essa é a nossa maior vergonha, ou seja, ter que assistir a sua repetição em “cada normalidade cotidiana” pelo que afirmou Hannah Arendt como “banalidade do mal”, através da qual um ser humano encontra a sua inumanidade executada pela ação de seu carrasco superior.

SP 18-25/04/2015