A juventude brasileira é o bode expiatório de uma sociedade covarde, hipócrita e paranoica
Toda a campanha na grande mídia e as movimentações na Câmara dos Deputados pela redução da maioridade penal são expressões de uma sociedade doente, que, agora, sucumbe de vez à barbárie.
Historicamente, o caos social sempre antecede o fascismo. A ideologia fascista, além de uma ideologia política de extrema-direita, é também uma forma de psicose coletiva. O conservador ainda manifesta algum contato com a realidade, mesmo os adeptos das crenças religiosas menos verossímeis, mas o fascista sempre é uma pessoa que parte de uma crença política baseada na mania de perseguição, na megalomania e no narcisismo; é um tipo autoritário irracional e que tenta compensar seu complexo de inferioridade se engrandecendo, oprimindo outros grupos e pessoas de forma sádica para se sentir poderoso e seguindo grandes líderes ou organizações e instituições para se sentir parte dessa grandeza que, em seu íntimo, ele sabe que lhe falta. O fundamentalista religioso parece seguir o mesmo padrão psicótico. A nossa sociedade foi educada pela ditadura fascista de Vargas e pela ditadura militar fascista nascida do golpe de Estado de 1964. A nossa mídia se construiu no período de terror da ditadura militar, em que prevalecia o terrorismo de Estado e o discurso paranoico da ameaça comunista. Isso tudo somado à incivilidade da sociedade brasileira, uma sociedade que ainda convive com mais de 13 milhões de analfabetos e outros tantos milhões de analfabetos funcionais e um baixíssimo nível cultural e uma ignorância crônica alimentada constantemente pela nossa indústria cultural e por líderes religiosos que preferem semear o ódio e a ignorância em suas pregações em suas igrejas e fora delas. Não há como numa sociedade como essas não prosperar o tipo de ideologia mais reacionária. E aplico aqui o conceito de ideologia no seu sentido original: o de falsa consciência. A ideologia dominante é uma falsificação da realidade, uma mistificação do real.
Rouanet define paranoia como um mecanismo de defesa no qual o sujeito projeta em outra pessoa ou coisa qualidades e desejos que não aceita em si mesmo; consiste na extrojeção do conflito sob a forma de um sistema delirante. E quanto à ideia de bode expiatório? Na Grécia antiga, o bode expiatório era alguém escolhido para que sobre ele recaíssem todas as faltas, todos os pecados, todos os males da comunidade e sua condenação significava a purificação da cidade. Quando Vernant e Vidal-Naquel em seu livro sobre o mito e a tragédia gregas tratam da tragédia de Édipo, expõem como se expiava os pecados da comunidade por meio da escolha de um homem que representasse todo esse mal. Parece-me que esse debate acerca dos adolescentes brasileiros se assemelha ao que os nazistas fizeram com os judeus na Alemanha. Não estou dizendo com isso que todos os jovens são pobres coitados que não sabem o que fazem, mas o que me parece é que essa política de responsabilização dos jovens como adultos é uma forma de desresponsabilização dos adultos que deveriam tomar conta desses jovens. De acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988: “Os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. É isso o que diz o artigo 229 da Constituição. Trata-se aqui, então, de uma questão muito simples: uma sociedade formada de pais ausentes, que se separam de seus filhos quando se separam de suas esposas em grande parte das vezes, de pais e mães que dizem não poder tomar conta de seus filhos por trabalharem mas que tem mais de 2 ou 3 filhos, ainda que o SUS disponibilize métodos anticoncepcionais, e de adultos que agem como adolescentes deixando filhos em casa sozinhos ou com avós e vizinhos para ir pra balada, pro baile, pro bar, ou ainda que se dedicam a seus projetos pessoais ou profissionais acima do cuidado e atenção com seus filhos e que, muitas vezes, não observam se seus filhos chegaram em casa com coisas que não tinham dinheiro para comprar (não dinheiro dado pelos pais), essa sociedade de “pessoas de bem” não tem moral para punir como adultos os adolescentes, que, ao cometerem crimes graves, já sofrem com a pena de privação da liberdade, neste país que possui a quarta população carcerária do planeta. O nosso Estado, então, querer aplicar medidas exemplares soa patético. Pela Constituição novamente (esse documento incômodo e constantemente emendado por políticos que não foram eleitos como constituintes), no artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Chega a ser piada! O que o Estado e as famílias brasileiras mais são é negligentes. Escolas públicas que não formam cidadãos e profissionais qualificados para o futuro do país e famílias desestruturadas e formadas por adultos violentos e egoístas é a realidade que nossos jovens encontram. E os criminosos adultos ainda usam esses jovens vulneráveis sem pai e nem mãe na prática para praticar crimes com eles e ainda assumir a maior parte da responsabilidade quando algo dá errado e o bando é preso. Essa é a realidade que a hipocrisia da sociedade brasileira e as mentiras da mídia e dos políticos profissionais de direita tentam esconder.
Como pai e professor, eu não poderia ser omisso diante dessa discussão. Governos e a classe dominante brasileira permitiram que o individualismo, o hedonismo e o consumismo do regime neoliberal levassem a nossa sociedade à beira da ruptura do tecido social, com a ampliação da barbárie, da violência urbana em suas múltiplas formas, e da repressão do Estado que se manifesta nos assassinatos de jovens negros e pobres nas favelas, sem julgamento, verdadeiras execuções, uma pena de morte ilegal e inconstitucional, e na repressão política (por meio da polícia também, e do Judiciário) de manifestações e greves, fazendo com que a democracia e a cidadania cedessem espaço para um estado de coisas em que o homem é o lobo do homem e o Estado é o lobo de todos, todos que levam suas vidas como gado, produzindo e consumindo de forma alienada até o fim dos seus dias. Agora querem fazer a juventude brasileira, a mesma juventude que ousou em junho de 2013 e em vários processos políticos antes e depois desse questionar essa ordem social excludente em que vivemos, pagar essa conta da violência urbana. Esse não é o futuro que eu quero para o meu filho. Eu não quero que ele cresça num país em que o presidente da Câmara acusado de corrupção pode posar de salvador da pátria e contar com o aplauso de uma massa ignorante e sem consciência política ou moral. É hora de dizer Não! Não à redução da maioridade penal e pela responsabilização das famílias (ricas, pobres ou de classe média) pelos atos infracionais de seus filhos. Ninguém é obrigado a ter filhos, mas se os tem, deve zelar por eles, ou ser punido pela lei e pela Justiça por não fazê-lo. Chega de demagogia e chega de usar bodes expiatórios para livrar a cara de uma sociedade que teme ver seu reflexo no espelho, um povo que não é pacato, mas violento, violento com as mulheres, violento com os pobres, violento com os negros, violento com os índios, violento com os homossexuais, violento com os idosos, violento com os jovens, e que tem uma classe dominante que brutaliza a classe trabalhadora, que, alienada, perde a sensibilidade e a solidariedade frente ao sofrimento do outro.