EM BUSCA DE CIDADANIA
Cidadão é um indivíduo capaz de viver em cidade. Isto é, solidariamente de acordo com as exigências do bem comum. Quando se fala em bem, já Platão, no IV século antes de Cristo, perguntava: o que é necessário para que o homem se conserve no bem numa sociedade civilizada? Em seu último livro, As Leis, ele ensaia uma resposta. Primeiramente aponta alguns prerequisitos, que resultam em consequências.
Segundo Platão, para uma pessoa se conservar no bem é necessário: 1. ter um nome; 2. ter um endereço; 3. ter uma relação comunitária; 4. ter uma profissão; 5. ter algo para estimar.
Este ensinamento de Platão, até hoje, é fundamental em qualquer sociedade civilizada. Os indivíduos, no território de um país, devem ser identificáveis através de um nome. Portanto, terem registro civil. Além disto, deve ser possível localizar cada cidadão, em algum endereço. Isto significa que os correios poderão chegar até ele, entregando-lhe correspondências. Compreende também Platão que nenhum homem é uma ilha, para verdadeiramente ter humanidade plena necessita de uma fliação e engajamento comunitário. Ser conhecido e relacionado a um grupo de pessoas: associação, partido, comunidade... Também será necessário que o indivíduo não viva como desocupado, vagabundo, inativo. Deverá exercer atividade profissional, buscando seu sustento, e contribuindo para o bemestar da coletividade. Além disto, toda pessoa deverá ter uma afetividade em relação a algo que estima, esforçando-se por preservá-la com responsabilidade.
Uma vez satisfeitos os prerequisitos, Platão imagina que a vida cidadã predominará na coletividade. Os cidadãos cumprirão seus deveres, e terão seus direitos respeitados. Mas, para que uma sociedade assim se institucionalize, é necessário que seus dirigentes sejam eleitos entre os cidadãos mais experientes e preocupados com o bem comum. Em outras palavras, os dirigentes serão os cidadãos mais preocupados com o bem geral, os mais honestos, os menos corruptos, os mais sensíveis à justiça, ao diálogo e à superação de conflitos. Os dirigentes deverão ser exemplo de vida para a população.
Diante destes ensinamentos da civilização clássica do Ocidente, o que dizer da realidade “civilizada” do Brasil? Convido cada leitor a construir uma resposta. Quantos habitantes destas terras brasílicas ainda não possuem registro civil? Quantos não podem ser encontrados (ou não querem ser encontrados!) pelo correio nas grotas dos interiores e nas periferias faveladas em nosso país? Quantos não possuem profissão, quantos se encontram ociosos (inclusive em nossas prisões!)? Quantos nada possuem para estimar, nem a consciência de que o próprio nome mereceria estima? E as nossas elites políticas e empresariais são exemplo de dignidade, honestidade, justiça e veracidade? As nossas elites se constituiram a partir dos melhores cidadãos? Os cidadãos mais experientes, mais cultos, mas sensíveis ao bemestar de todos os cidadãos?
Nada desejo a não ser respostas sinceras ao que acima menciono. Como já dizia um de nossos literatos, sob certos aspectos, chegamos a uma situação em que muitos cidadãos não têm mais a capacidade de serem honestos nem mesmo perante os seus próprios cachorros. Ninguém precisa ser profeta para prognosticar que, sem o cuidado e o cumprimento das exigências platônicas de cidadania, a realidade escabrosa brasileira vai tomar outros rumos.
Inácio Strieder é professor de filosofia. Recife- PE.