Cinquenta anos que continuam doendo muito
CINQUENTA ANOS QUE CONTINUAM DOENDO MUITO
(Amilcar Neves)
(artigo publicado no Suplemento Cultural de Santa Catarina [Ô Catarina] nº 82, mai/2014)
— Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar? — pergunta o presidente dos EUA, John Fitzgerald Kennedy.
— Essa é uma outra categoria, que eu chamo de "contingência perigosa possivelmente requerendo uma ação rápida". Esse é o principal problema — responde Lincoln Gordon, embaixador dos EUA no Brasil.
Conversa gravada em 7 de outubro de 1963 no Salão Oval da Casa Branca, sede oficial do governo estadunidense. O assunto é o Brasil.
Alguns primórdios – sem organização didática nem pretensão de esgotar o assunto
No segundo semestre de 2013 estive em uma escola pública municipal de Florianópolis. Convidado por professores dentro de um programa de divulgação de escritores locais promovido pela Secretaria da Educação, fui conversar com os alunos que haviam lido um livro de minha autoria. A obra é um texto para teatro que faz referências diretas ao período autoritário vivido pelo País durante a ditadura militar brasileira, hoje mais apropriadamente chamada de ditadura civil e militar, pois em verdade os militares, que assumiram os ônus do golpe, do governo e dos diversos atos institucionais, um mais drástico e restritivo do que o anterior, nada mais foram do que ingênuos servidores de interesses privados de grandes grupos empresariais brasileiros, tanto da indústria, do comércio e da agricultura quanto dos meios de comunicação, da classe média e das grandes fortunas. Evidentemente que, muitas vezes, um mesmo indivíduo ou empresa encaixava-se em mais de uma dessas classificações que abrigaram os golpistas, em 1º de abril de 1964, e os beneficiários da grande festa restrita que foram os 21 anos de 64 até 85.
O pior de tudo é que os conspiradores, sabe-se hoje a partir de documentos inquestionáveis liberados pelo governo dos EUA, tinham plena consciência de que agiam sob a cobertura confortável do dinheiro e da máquina de guerra dos Estados Unidos (dinheiro de cuja prestação de contas, alertava o próprio embaixador dos EUA no Brasil ao seu presidente, não se poderia esperar qualquer transparência – pois a corrupção nestes trópicos já era prática antiga, em especial por parte de alguém que se vendia para atraiçoar o País). Ou seja: traíram a Pátria em favor de uma potência estrangeira por conta de pretextos sabidamente esfarrapados, de quimeras que foram exaustivamente difundidas pela imprensa estabelecida e pelos canais alternativos existentes ou criados à época. Nos meus quinze anos de idade em 1962, na minha insignificância de pequeno líder estudantil na distante cidade de Tubarão, no Sul do Estado, na inexpressividade das minhas primeiras crônicas lidas em programas estudantis nas duas rádios locais, Tubá e Tabajara, recebi muito boletim colorido em verde e amarelo, impresso em papel cuchê de alta qualidade, diagramado com excelência profissional, editado pelo IBAD. Nesses periódicos pregava-se descaradamente a conspiração, advogava-se a derrubada do governo, ridicularizava-se a pessoa do Presidente e aviltavam-se as instituições republicanas de um país livre e soberano, regido por uma Constituição legitimamente escrita, cujo povo votava regularmente em eleições universais livres e democráticas.
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), voltado à propaganda intensiva, repetitiva, de massa, foi criado em 1959, enquanto seu primo-irmão, e bastardos ambos, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), é de 1962. Este preparava o caminho junto às empresas e aos empresários em geral, procurando dar um tom científico ou acadêmico às catástrofes que anunciava caso o País não mudasse de rumo: ou seja, caso não se derrubasse um governo que ensaiava tornar-se independente dos interesses dos EUA – uma novidade, esta, a qual, fora o caso de Cuba exatamente em 1959, surgia no continente americano e passava a ser intolerável: não se poderia admitir um País "amigo", do tamanho do Brasil, abrigado no quintal da grande nação do Norte, com pretensões ao não alinhamento, isto é, à busca de um caminho próprio que não se subordinasse diretamente a qualquer dos polos que então dilaceravam o planeta com a Guerra Fria: Estados Unidos e União Soviética. Dividido o mundo em duas partes mais ou menos iguais, não cabia espaço para uma terceira via, independente e preocupada com os interesses nacionais e do seu povo. Só haveria de haver vida sob uma das duas bandeiras.
A crueldade das prisões arbitrárias, das cassações de mandato dos opositores, do fechamento de jornais, da censura generalizada à imprensa, da suspensão dos direitos individuais e das garantias constitucionais, da supressão da liberdade, da submissão da Justiça, do fechamento do Congresso, das torturas medievais, das mortes cruéis, dos sequestros e dos desaparecimentos de pessoas, grande parte delas sumida até hoje, que se seguiu àquele 1º de abril são histórias que só não conhece quem não quer e só não se sente enfurecido e revoltado contra seus autores quem esconde interesses escusos e abriga vantagens auferidas às custas do sangue e da dignidade de brasileiros.
A memória coletiva que vai ficando
Naquele início de tarde numa escola do Norte da Ilha de Santa Catarina, a professora de Literatura me recebeu com evidente satisfação por ter um escritor ao vivo em sala de aula para conversar com seus alunos. Ela se achou no dever de informar que solicitara a colaboração do professor de História – e apressou-se a nos apresentar um ao outro. E explicou:
- É muito importante isso que o senhor escreve sobre os fatos históricos do Brasil, os estudantes precisam entender bem o que aconteceu e que o senhor relata com força e precisão. A gente conhece isso tudo que houve, mas, sabe como é, com as tarefas do dia a dia nem sempre se consegue lembrar dos detalhes, das datas, dos personagens... Por isso pedi a ajuda do nosso professor de História para esclarecer os acontecimentos aos nossos alunos, acho que foi uma boa ideia, não acha?
Acho, sim, disse-lhe que achei muito bom, até mesmo porque o interessante em uma obra literária é exatamente essa multiplicidade de disciplinas que ela abarca, essa possibilidade de discutir diversos temas do conhecimento e da experiência humanos. Mas me assustei na hora. Pensei cá comigo: como então um professor de colégio, seja de que matéria for, não se encontra em condições de discutir com clareza e pleno conhecimento de causa golpe e ditadura no Brasil e na América do Sul? Verdade que 50 anos estão (estavam, na época) prestes a transcorrer desde aquele momento em que os militares rasgaram a Constituição e se insubordinaram contra seu comandante em chefe, o Presidente da República. Para a caserna, uma das faltas mais apavorantes é a quebra da sagrada hierarquia – e eles próprios violaram esse princípio de respeito e acatamento da autoridade ao destituírem, com o apoio declarado de um país estrangeiro, o Chefe da Nação. Além desse ato de insubordinação e desrespeito às regras castrenses e aos preceitos constitucionais, mandaram para a geladeira da reserva, ou mesmo prenderam e expulsaram das Forças Armadas, centenas de oficiais, de patentes superiores ou inferiores, que se posicionaram francamente contrários à arbitrariedade cometida – pois havia militares democratas no Exército, na Marinha e na Aeronáutica, mas este tipo de soldado, incomodado com a ilegalidade dos atos praticados, não servia aos propósitos do grupo que assaltou o poder e submeteu a Nação ao arbítrio e à violência.
Assustei-me ao perceber, nas palavras da boa e bem-intencionada professora, um sintoma grave que certamente se espalha gradativamente pela sociedade brasileira: a perda da memória dos acontecimentos trágicos vividos desde 1964 até 1985, com a consequente possibilidade de que algo semelhante viesse, ou venha, a se repetir, para desgraça geral e benefício de uma minoria já injustamente privilegiada. Para quem prega a necessidade do conhecimento dos fatos de cinquenta anos atrás para evitar que eles tornem a acontecer, a amnésia social é uma tragédia. O curioso é que aceitamos pacificamente a condenação de Hitler e do nazismo, pelas barbáries cometidas por eles, mas não conseguimos enxergar com os mesmos olhos as barbáries cometidas contra o povo brasileiro, e muitas vezes encontramos gente que defende o que houve, pregando um novo golpe de Estado com nova ditadura militar como solução mágica para os males que nos afligem.
Arautos dos "bons tempos" reescrevem a História
A coisa talvez seja mais séria do que se pensa. Há um senhor, de nome Marco Antonio Villa, que publicou um livro pela Editora Leya neste início de 2014. Tem por título "Ditadura à Brasileira – 1964-1985: A Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita". Villa é doutor em História e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Ele afirma ter sido sempre contrário ao golpe. Uma das teses que defende em sua obra é que não houve ditadura no Brasil antes de 1968, quando foi assinado o famigerado Ato Institucional nº 5, que aprofundou o despotismo, nem depois de 1979, quando, pressionada pelos acontecimentos, a ditadura inventou e impôs uma Lei da Anistia que permitia a volta ao Brasil dos exilados e refugiados, mas, acima de tudo, isentaria para todo o sempre os assassinos do regime que torturam, mataram e sumiram com opositores: alguns que pegaram em armas contra os usurpadores do poder, outros que cometeram o gravíssimo crime de ter opinião discordante e por denunciarem os abusos e irregularidades. Com esse artifício, Villa reduz a "nossa" ditadura para 11 anos e corta, de um só golpe, 10 anos de arbítrio e o próprio golpe de 64.
O que assusta em Villa, um suposto pensador acadêmico, é sua absoluta falta de isenção para analisar a História e debruçar-se sobre eventos do passado e do presente. Basta buscar por ele na Internet e ler apenas os títulos dos artigos que escreve sistematicamente para "O Estado de São Paulo" e "O Globo", dos debates dos quais participa frequentemente na "Veja" e na "Globo News", e dos comentários semanais que grava para a "Rádio Metrópole", de Salvador. Além disso, com tantos compromissos rotineiros, custa crer que lhe sobre um mínimo de tempo sequer para dar uma aula no interior de São Paulo.
Villa, porém, é historiador, especialista e membro do Instituto Millenium (IMIL), mantido pelos grupos Abril (comunicação), Gerdau (siderurgia) e Pottencial (seguros). O IMIL tem sido extremamente bem sucedido no seu empenho de fabricar pensadores "jovens" e "independentes" que critiquem a ditadura passada, defendam os valores conservadores e as virtudes do mercado, e invistam acidamente contra a figura do (ou da) Presidente da República (ou seja, contra o Executivo), contra os políticos em geral (ou seja, contra o Legislativo), contra os defensores do meio ambiente (ou seja, contra a sociedade civil que pensa em formas alternativas de vida) e contra juízes de todos os graus que contrariem suas vontades (ou seja, contra o Judiciário) – promovem a desmoralização das instituições democráticas como forma de aniquilamento de resistências a fim de justificar e possibilitar um novo golpe, um novo 1964.
Villa não está só. Há dezenas de exemplos. Como o caso de Reinaldo Azevedo, blogueiro e colunista da "Veja", que descobriu a tradução correta da frase citada na epígrafe deste artigo e que, segundo ele, muda totalmente o sentido da conversa e da História. De acordo com suas pesquisas, o que Kennedy fala para Gordon é:
— Você vê uma situação iminente em que nós poderíamos considerar conveniente intervir militarmente?
Parece-me que a ideia de intervenção militar no Brasil permanece viva e igualmente afrontosa em ambas as versões. Conforme o sítio do IMIL, Azevedo é Convidado (seja lá o que isto signifique) do Instituto Millenium.
A razão da dor semissecular
Essa dor de meio século nasce de uma ferida que ainda não fechamos porque não respeitamos os fatos objetivos da História (ainda que um indivíduo possa se colocar à margem da Lei, não é dada em hipótese alguma ao Estado, nem aos seus agentes, e especialmente se estiverem armados, a opção de violar a Lei): trair o País é crime, derrubar um governo legítimo e democrático é crime, manter alguém preso sem processo, sequestrar, torturar e matar pessoas são crimes. Enquanto não encararmos de frente essa realidade, responsabilizando ainda que seja a memória dos criminosos, estaremos mantendo e aprofundando a divisão da sociedade brasileira.
Para construir uma visão geral da História
Aos que gostam de ler, um excelente ponto de partida é o livro "A Ditadura Militar no Brasil – A História em cima dos fatos", publicado em 2007 na forma de fascículos pela Caros Amigos Editora.
Aos que preferem ver, a indicação é o didático e incontestável documentário "O Dia que Durou 21 Anos", dirigido por Camilo Tavares e lançado em 2012.
Aos que usam teclar, a dica é ir até http://app.vc/ditadura_na_memoria1, baixar gratuitamente o "app" "Ditadura na Memória", desenvolvido por alunos do Colégio I. L. Peretz, em São Paulo, e navegar no "smart" ou no "tablet" pela História recente do Brasil. Para não esquecer jamais.
Conversa gravada em abril de 1962 entre o presidente John Kennedy (assassinado no ano seguinte) e Lincoln Gordon.
— Podemos fazer algo contra Goulart? — pergunta o presidente.
— Sim, acho que podemos — responde o embaixador.
N.S.Desterro, março de 2014
Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.
Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento