A fita de Möbius e as manifestações
Quase todas as superfícies possuem dois lados; uma folha de papel possui um lado, e outro lado; uma bola possui o lado de fora e o de dentro; a fita de Möbius possui apenas um único lado, o que nos parece estranho.
A construção de uma dessas fitas é bem simples; se colamos as duas pontas de uma fita, uma na outra, fazemos om anel (ou pulseira, ou colar); mas, se antes de colar torcemos a fita por meia volta, teremos a fita de Möbius, basta isso. Se deslizarmos o polegar pela fita percorreremos ela toda, de “um lado” e de “outro”, já que ela só tem um único lado.
O policial sobe o morro para mostrar quem manda, também maltrata o manifestante pelo mesmo motivo, usa sua arma de dissuasão como instrumento de tortura. O gás de pimenta foi idealizado para dissolver multidões ao ser pulverizado à distância; inserido no olho do manifestante é tortura, crime hediondo e covarde.
O policial que tortura e mata é um criminoso fardado.
O bandido no morro aprende bem a lição ensinada pelos policiais: manda quem tem o poder. O policial manda, dá as ordens, consegue isso porque está armado; os bandidos aprendem, fazem o mesmo, também se armam, também querem mandar.
O policial não sabe que está ali para cumprir e fazer cumprir as leis, acredita ser o seu dever botar moral, mostrar quem manda, e é isso o que ele ensina. O bandido aprende, torna-se igual a ele.
O manifestante talvez saiba que existem leis, talvez creia que elas devam ser cumpridas por todos. Mas, que lição ele recebe junto com a pimenta no olho, depois de imobilizado à força? O que aprenderámos se, imobilizados por policiais armados, recebêssemos uma carga de pimenta nos olhos? Fico tentando imaginar os sentimentos do cidadão desorientado, incapaz de abrir os olhos ardentes, momentaneamente cego, à beira do pânico, temendo a cegueira definitiva. A desorientação no tempo e no espaço, os safanões contínuos.
Difícil imaginar o que passa na cabeça de um cidadão nesse momento, mas acredito que lhe venha ódio, um ódio cego e intenso. Talvez seja essa a lição da pimenta no olho jogada pelo policial; o ódio cego e intenso.
Talvez seja esse, exatamente, o sentimento do policial ao torturar o manifestante, ao jogar pimenta em seus olhos, já o tendo dominado. O policial o quer ao seu lado, quer o manifestante odiando tudo tanto quanto ele odeia; a lição é de ódio, de ódio e cegueira. O bandido do morro também sabe odiar, também já aprendeu a mesma lição, também a ensina. E estamos todos do mesmo lado, do único lado da mesma fita, embora nos confrontemos como se estivéssemos em dois lados. E somos todos iguais, o bandido do morro, o bandido fardado e o manifestante enlouquecido. O papel da polícia tem sido o de acirrar ódios, é ela que engrossa as manifestações.