Carnaval: a quem serve?
CARNAVAL: a quem serve?
*João Almeida Cruz Santiago
Fevereiro acabou e assim o carnaval passou. No entanto, foi realmente extasiante ver as serpentinas, as plumas, os paetês, os confetes e as purpurinas ornamentando ou sendo lançados para o alto e cobrir, de corpo inteiro, os foliões nos salões. Também causou grande êxtase ver multidões nos estados usando os mais variados tipos de fantasias nos bailes tradicionais. Igualmente, foi muito bonito de se ver as cidades bastante enfeitadas, bem limpinhas, sobretudo os corredores da folia e os sambódromos.
Costumeiramente nota-se larguíssimos sorrisos estampados nas faces dos brincantes carnavalescos, nas mais puras e reais demonstrações de alegrias e contentamentos. Ademais, sem querer menoscabar os aspectos suscitados anteriormente, estou convencido de que não há emoção maior no Brasil do que aquela causada pela celebração do “casamento” do samba com o carnaval, em que pese ele mitigar, de forma festiva, a maior vítima do Estado brasileiro: o negro.
Referida vitimização, torna-se visível pelos indicadores sociais, que confirmam ser ele (o negro), historicamente, submetido a um verdadeiro alijamento no tocante ao acesso às políticas públicas (educação, serviço médico-hospitalar, segurança, saneamento básico, moradia, lazer, trabalho, entre outros), preconizadas pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo sexto.
Neste momento quero fazer duas proposituras aos que me leem: primeira, que se disponham a refletir; e, a segunda, que aceitem orientar sua reflexão, pelas facetas do carnaval indicadas mais adiante, que provavelmente passam despercebidas por muitos. Porém, é oportuno salientar, ainda, que alguns pontos que compõem esta análise, certamente, já foram arrolados em outras reflexões sobre o tema.
Há quem defenda que o carnaval é uma invenção brasileira. Na verdade esta festa é originária da Grécia Antiga (por volta de 600 a 520 a.C.) e tinha como finalidade agradecer, através de cultos, a fertilidade do solo e, consequentemente, a produção agrícola. O período carnavalesco era marcado pelo “adeus à carne” ou do latim “carne vale” dando origem ao termo “carnaval”.
Durante um tempo significativo o carnaval foi considerado um evento profano, porque os gregos e romanos resolveram optar pela inserção de bebidas e práticas sexuais, porém, na Idade Média ele passou a ser adotado como uma comemoração, pela Igreja Católica. Tal festividade também se desenvolveu na sociedade vitoriana da Europa do século XIX. Somente depois de todo esse percurso histórico foi que o carnaval aportou no Brasil. Portanto, dizer que o carnaval nasceu no Brasil é, no mínimo, uma falácia.
Igualmente é falaciosa a ideia, que alguns espertalhões tentam introjetar nas nossas mentes, de que o carnaval é uma festa caracterizada pelo espírito democrático, porque “une” os mais diversos povos e etnias. Pode até ter sido assim, em um tempo cada vez mais para trás. Na realidade, o carnaval, tem sido feito para as classes que detém o maior quinhão econômico dentro da sociedade. O pobre entra de penetra, tornando-se, assim, uma persona non grata. Basta notar alguns aspectos, quais sejam: os altíssimos preços das indumentárias, usadas obrigatoriamente, para desfilar nos blocos ou escolas de samba mais famosos do país; os caríssimos camarotes, ditos vips, porque dão direito à bebidas, à comidas e outras coisas mais; observe, também, os cordões de isolamento, utilizados nas ”procissões” puxadas pelos trios elétricos, que separam os ricos dos pobretões, numa nítida segregação social, não restando às classes menos abastadas outra alternativa senão a de ir para aquilo que ficou conhecido como “pipoca”. Não deixe de examinar miudamente, também, a presença de um grande número de seguranças particulares, verdadeiros “armários”, para dar proteção aos “filhinhos de papai”, enquanto isso os pobres são entregues à própria sorte.
Para apurar ainda mais a nossa análise cabe aqui fazermos algumas indagações. Quantos homens, dos já insuficientes efetivos das polícias militar, civil e federal; das guardas municipais e outras do gênero, são deslocados para os sambódromos, corredores da folia, praças e outros lugares onde os brincantes se concentram, facilitando, assim, as ações em outros lugares das cidades de assaltantes, traficantes e outros transgressores do ordenamento jurídico vigente? Quantos médicos e outras equipes de profissionais da saúde deixam de realizar os procedimentos de rotina, para ficarem à disposição de um sem número de pessoas em completo estado de embriaguez, sob o efeito de substâncias alucinógenas, outras feridas, resultantes do envolvimento em verdadeiros duelos, dignos das arenas que abrigavam os gladiadores da Roma Antiga e outras vítimas de atropelamentos?
Já imaginou o caos que isto pode causar num estado como o Maranhão que segundo o Ministério da Saúde do Brasil possui, ínfimos, 0,58 médicos para cada grupo de mil pessoas? A Organização Mundial de Saúde, certamente, não sugere, somente essa quantidade. É possível mensurar os prejuízos causados pelo recrudescimento das atitudes vandálicas sobre o patrimônio público? Quantas jovens e adolescentes têm seus futuros comprometidos devido à gravidez precoce? Quantos homens e mulheres entram nas estatísticas, logo após os festejos, engrossando as fileiras do grupo de pessoas que contraem a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS)? Quantos abortos são realizados (clandestinamente!) logo após as festividades, causando as mortes de muitas crianças e mulheres, mormente, jovens e adolescentes, além de aquecer o mercado que negocia medicamentos abortivos?
Quantas demandas sociais deixam de ser discutidas, no Congresso Nacional, porque o foco é a festa momesca? É isso mesmo, períodos festivos como o carnaval anestesiam a população e criam uma consciência de liberdade, essa deixa é aproveitada pelos maus políticos, por exemplo, para realizarem suas tramas ardilosas. Quantos milhões de reais são gastos para pagar indenizações e tratamentos de reabilitação de
vítimas de atropelamentos, colisões frontais e outros acidentes de trânsito? Aliás, sobre isso, vale apena lembrar que neste carnaval 2013, oficialmente, foram registrados 3.149 acidentes que resultaram nas mortes de 157 pessoas. A redução foi de 10% e 18% respectivamente, em relação ao de 2012. Este balanço foi comemorado, de forma pirotécnica, pelo ministro da justiça, no entanto, ele mesmo, admite que isso só ocorreu devido ao endurecimento da chamada Lei Seca.
Exatamente isso, o governo matou dois coelhos com uma cajadada só. Reduziu o número de mortes e, de quebra, aumentou a sua arrecadação porque aplicou um número maior de pesadas multas. Além de tudo isso, quanta riqueza deixa de ser produzida, devido o carnaval, e este crescimento econômico poderia ser transformado em desenvolvimento econômico? Quantas escolas, postos de saúde, rodovias, entre outros bens públicos, poderiam ser construídos ou reformados com o montante de recursos dispensado pelos Estados e municípios para contratar bandas? Quantos meninos e meninas são sugados para o “mundo” da prostituição como consequência da exacerbação do turismo sexual, que pulula nas capitais, principalmente àquelas que se localizam no litoral nordestino?
Amiúde, muito se fala do aquecimento da economia nacional durante a festa momesca, porém, todos nós sabemos que o “grosso” do lucro gerado pelo carnaval não irá fazer parte do ativo dos pequenos comerciantes e que os verdadeiros beneficiários são os fabricantes de bebidas, os proprietários dos pomposos trios elétricos contratados pelos governos e alguns poucos artistas que representam o estilo denominado axé music.
Não se trata aqui de uma satanização do carnaval, pois, como se sabe, a nossa Carta Magna assegura, nos artigos 215 e 216, todas as manifestações culturais do povo brasileiro. Todavia, estou convicto de que a antiguíssima “política do pão e circo”, bancada pelo Estado brasileiro no carnaval, fere de morte o princípio da moralidade, na medida em que gasta milhões, das mais variadas formas, para promovê-lo e, ao mesmo tempo, boa parte da população, entre esta se destacando o grupo negro, não dispõe das condições mínimas para sobreviver.
*O autor é negro, licenciado em Geografia (UEMA) e bacharelando em Direito (FAI-MA). Registro meus agradecimentos ao historiador Francinaldo de Jesus Morais, autor do livro Ecos da Escravidão (Editora Ética), pelas discussões que me proporcionaram realizar alguns ajustes neste texto.