Democracia representativa:compartilhamento de poder ou ato abdicatório de direitos?
Democracia representativa: compartilhamento de poder ou ato abdicatório de direitos?
*João Almeida Cruz Santiago
O presente trabalho, inequivocamente, não tem a pretensão de esgotar a discussão acerca do tema em exame, mas tão-somente, trazer à baila a inquietude por ele suscitada. Tal mal-estar materializa-se, de forma cabal, por meio da patente crise de credibilidade, que assola a maioria da classe política brasileira, tão prolatada pelos instrumentos midiáticos ou pelos marqueteiros que, muitas vezes, “brilhantemente”, convertem políticos corruptos em mocinhos defensores dos oprimidos às vésperas dos pleitos eleitorais.
O conceito de democracia, como se sabe, é complexo e polissêmico. A ideia de democracia é remota, como a etimologia da palavra, e está associada às instituições que asseguram o governo do povo. Costuma-se explicar que o termo “democracia”, vem do grego demo, significando “povo” e kratos, “poder”. Democracia seria, portanto, o poder do povo, para o povo e pelo povo.
Infelizmente, a priori, os gregos não tinham uma acepção tão abrangente de democracia. O cerne da questão é que as concepções modernas de “povo” e “poder político” estão muito distantes daquilo que, mormente, os gregos, denominavam por esses termos. Isto ocorre porque, para eles, o “demos” não era algo de igual valor, atribuído à noção atual de “povo”, aqui compreendida como uma ampla porção de indivíduos. Em contraposição, o “demos” era uma concepção, relativamente restrita, considerando-se como “povo” apenas uma minúscula quantidade de pessoas, quais sejam, aquelas oriundas da cidade, adultos e homens livres, ou seja, uma percentagem ínfima, algo em torno de 10% a 15% do contingente populacional, somente. Destarte, mulheres, estrangeiros, escravos, crianças e jovens estavam, por definição, excluídos do “jogo”. Naquela época, embora de forma restrita, podia-se falar em democracia direta, definida como qualquer forma de organização na qual todos os cidadãos podem participar diretamente no processo de tomada de decisões políticas. Conclui-se que, certamente, os gregos ficariam estupefatos com a ideia de um sufrágio universalizado, caracterizado pelo direito ao voto estendido, irrestritamente, a todos.
Já a democracia representativa, é um sistema político no qual o povo exerce sua soberania fazendo uso de organismos representativos, ou seja, consiste no exercício do poder político pelos concidadãos eleitores, indiretamente, através de seus “representantes”, a quem é conferido um mandato para atuar, favoravelmente, em seu nome e por sua autoridade, legalizados pelo poder originário do povo. No Brasil, a escolha dos ”representantes” do povo é feita através do voto direto e secreto, com valor igual para todos, como prevê o artigo 14 da Constituição Federal. Portanto, numa democracia representativa é dada, ao povo, uma única arma na luta pela materialização do poder: o voto. Porém, a classe dominante sempre encontra um artifício para tolher a iniciativa popular na busca pela “plena” efetivação da soberania. É mister nos assenhorear de outras peculiaridades da democracia representativa. É fato bem sabido, que a hodierna noção de democracia, a liberal, desenvolveu-se durante todo o século XIX e consolidou-se no seguinte, estando, intrinsecamente, relacionada ao ideário de participação direta do povo, que remonta à Grécia Clássica, mas que avançou, sobretudo, a partir das importantíssimas contribuições da Revolução Francesa, do Governo Representativo Liberal Inglês e, por fim, da Revolução Americana, exatamente, aquela mesma, que de modo visceral ficou caracterizada por um intrigante paradoxo, qual seja, os mesmos indivíduos que fervorosamente lutavam em prol de sua liberdade, contra o domínio inglês, conseguiram, de maneira inescrupulosa, a proeza de negá-la à imensa massa escravizada. Tais acontecimentos históricos foram marcados por experiências no sentido da emancipação do homem e a ratificação de sua autodeterminação dentro do meio social. Contudo, vale ressaltar que no Brasil e nos Estados Unidos, os processos emancipatórios, 1822 e 1776, respectivamente, não significaram o fim do sistema escravista, pois naquele, formalmente, isso só aconteceu em 1888 e, neste, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 13, em 1865.
Na Grécia Clássica, tomar parte no processo democrático tinha seus limites, porque apenas a uma diminuta parcela da sociedade era conferido esse privilégio. Por outro lado, na democracia representativa o sufrágio universal conseguiu, quantitativamente, assegurar a participação ativa da grande maioria dos cidadãos. Todavia, qualitativamente, seus mecanismos impõem limitações à atuação dos integrantes no “jogo” democrático, porque segrega a sociedade em dois polos, quais sejam, a classe dirigente e a classe dirigida. É isso mesmo, a democracia representativa torna essencial e constante a apartação social entre mandantes e mandados. A discrepância entre dirigentes e dirigidos ou representantes e representados, proporciona o afastamento da política das práticas corriqueiras deixando distantes as duas esferas, que são consideradas “verdadeiras” irmãs siamesas, a saber: a política e a vida social. Critica-se a democracia representativa desenvolvida em países como o Brasil, quando se detecta algumas falhas gravíssimas em seu sistema eleitoral, a exemplo daquela que permite a renúncia de um político, provavelmente, para evitar a sua cassação e, consequentemente, a suspensão de seus direitos políticos, às vésperas de uma eleição e, ao mesmo tempo, convalida a candidatura do mesmo para disputar as eleições que se avizinham. Infelizmente, estes “políticos”, na maioria das vezes, conseguem a reeleição. Outra crítica que se faz à democracia representativa diz respeito ao, quase, desencanto com os políticos profissionais. Além disso, tem também, aquela que só ver a importância da opinião do povo a cada dois anos. Finalmente, existe outra que aponta para a total liberdade dos eleitos, que tradicionalmente, durante o “seu” mandato, podem atuar como bem entenderem até o próximo pleito. O somatório de todas essas críticas nos leva a crer que a democracia representativa é marcada pela volatilidade do poder do povo.
A ocasião é oportuna para levantarmos algumas questões acerca da democracia representativa: será que o povo ao escolher seus representantes, o faz de maneira consciente? Será que, se eles (os “nossos representantes”), deixassem claro que, uma vez eleitos/reeleitos, transformariam o voto do povo em moeda de troca nos “balcões de negócios” (Câmaras, Assembleias Legislativas e gabinetes daqueles que ocupam o cargo máximo do poder executivo), eles seriam eleitos/reeleitos? Será que um determinado político eleito/reeleito teria a coragem de renunciar o seu mandato, por não ter atingido suas metas de campanha e, nem cumprido suas prerrogativas? Será que, se os mandatos, proporcionais ou majoritários, não conferissem aos seus “donos”, todos aqueles privilégios e remunerações, eles, mesmo assim, disputariam as eleições? Porque esse número exorbitante de partidos políticos e, consequentemente, um sem número de candidatos? Como se vê o assunto em tela é palpitante e requer respostas plausíveis.
Numa democracia representativa o povo delega o seu poder decisório aos “políticos”, estes, todavia, por medo ou, simplesmente, por falta de interesse, deixam, até, de discutir demandas que o povo julga relevantes, a saber: o aborto, a união homoafetiva, o fim do voto obrigatório, a reforma política, a reforma tributária, entre outras questões importantes. Esse comportamento, sobretudo, nos diversos parlamentos brasileiros, representa uma “verdadeira” traição, na medida em que eles (os parlamentares) não cumprem com o seu dever constitucional de criar leis que atendam às necessidades sociais.
No Brasil, a reforma política urge, mormente, no que tange à adoção do voto distrital, que representaria uma incomensurável redução do número de candidatos, assim, ficaria “fácil” a escolha dos novos “representantes do povo”, no entanto, ela é, conscientemente, ignorada. Lógico. Interessa muito ao alto escalão dos políticos brasileiros o deferimento, por parte dos tribunais eleitorais, de uma infinidade de registros de candidaturas, porque isso facilita a proliferação das ideias que justificam o desinteresse do povo em saber aspectos importantes acerca da vida pregressa dos candidatos, suas certidões criminosas e suas prestações de contas da campanha.
Obviamente, causaria um enorme contentamento, ao povo, saber que todos os maus políticos seriam, severamente, punidos por cometerem crimes contra a administração pública, tais como: peculato, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, concussão, corrupção passiva, prevaricação, entre outros, previstos no Código Penal Brasileiro, nos artigos 312, 315, 316, 317 e 319, respectivamente.
Podemos afirmar que o Estado brasileiro é omisso no tocante ao zelo pelos Direitos Fundamentais dos cidadãos, na medida em que permite a coexistência de elementos típicos da estrutura do Brasil-colônia, com elementos que caracterizam a república, como o mandonismo local, por exemplo. Esse cenário permite que a nefasta política tradicional, ou seja, aquela marcada pelo autoritarismo, personalismo, jogo de influência, cooptação, abuso de poder econômico, nepotismo, entre outras especificidades, se sobreponha à Constituição Federal. Tal postura é a mais “verdadeira” demonstração de fraqueza e pouquíssima preocupação do “nosso” Estado com o povo.
Uma democracia “verdadeira”, “plena” e “total”, torna-se inviável dentro de um sistema cuja base é a segregação social, porque o poder é originário do povo, no entanto, o povo não tem o controle deste poder, pelo simples fato, de não ser o proprietário dos meios através dos quais, é gerada toda a riqueza, que sustenta o sistema socioeconômico imposto ao Brasil. Assim, pode-se dizer que a grande maioria dos nossos representantes, age, diuturnamente, no sentido de resguardar os interesses da classe dirigente, porque eles são a personificação desta classe. Destarte, o poder político ou poder público, entendido como uma emanação da livre vontade do povo parece ser mais uma ficção, uma realidade onírica. Na verdade, o povo apenas delega poderes, mas não pode exercer soberania alguma, pois os organismos representativos pertencem mais à prática do que à moral política.
Diante do exposto, compreende-se que o atual modelo de democracia adotado no Brasil, não obstante estar em consonância com o artigo 1º,§ único da Constituição Federal, carece de profundos ajustes, porque como tentamos demonstrar ao longo da nossa análise, ele não atende aos reclamos do povo, uma vez que garante a manutenção do status quo vigente, caracterizado pela “perpetuação” dos representantes do capital no poder. Bom seria se o povo pudesse exercer o seu poder cotidianamente e, não somente no dia das eleições.
João Almeida Cruz Santiago é licenciado em Geografia (UEMA), professor dos ensinos médio e fundamental da rede estadual do Maranhão, bacharelando em Direito e autor do artigo Carnaval: a quem serve? (Revista Prática Jurídica). Colaborou o Historiador Francinaldo de Jesus Morais, autor do livro Ecos da Escravidão (Editora Ética).