A PRESIDENTA E O MENDIGO
O homem de meia-idade, maltrapilho, barbudo, pés descalços, tenta se aproximar do palácio quando é interpelado por um sujeito de terno preto, gravata vermelha, celular na mão:
- Alto lá, diz o homem. O que você deseja?
- Preciso falar com a presidenta...
- Qual é o assunto? Sou assessor dela, diz o homem.
- É que ouvi dizer que ela ia acabar com a miséria em 2014 e como o ano já começou...
- Veja bem, interrompe o assessor. Já tiramos mais de 80 milhões da miséria. Mas encontramos muita resistência. Tem a elite conservadora, a mídia tendenciosa, o capitalismo, a globalização...
- Puxa, o sr. fala bonito. Mas estou na miséria há 50 anos e para mim nada mudou.
- Está na miséria porque quer. É só se cadastrar nos programas sociais do governo.
- Ah, é? O que eu tenho que fazer?
- Preencha uma ficha, coloque seu endereço, renda familiar, RG, CPF, título de eleitor...
- Mas eu moro na rua, não tenho documentos. Só tenho um cachorro doente.
- Então, para nós, você não existe.
- É, já percebi. Mas gostaria de falar com a presidenta mesmo assim. Pode ser?
- No momento, não. Ela viajou para Cuba, com escala em Portugal.
- Ah, tá. Posso marcar um encontro, então?
- Vamos ver. Você é banqueiro, empresário?
- Claro que não! Não tá vendo a minha cara??
- Faz parte da comissão da FIFA que veio vistoriar os estádios da Copa?
- Copa? Que copa? Moro embaixo da ponte. Lá não tem copa, cozinha, banheiro...
- Faz parte de algum movimento organizado associado ao nosso partido?
- Não sr.
- Já invadiu propriedade alheia, depredou, destruiu plantações, quebrou máquinas?
- Não sr.
- Assim fica difícil. Já participou de manifestação em frente ao palácio, jogou pedras na polícia?
- Também não.
- Então desista. Você não tem perfil para conversar com a presidenta.
- Mas o sr. não pode, pelo menos, me arranjar um dinheirinho? Soube que alguns amigos do governo que estão presos aqui perto receberam ajuda para pagar umas dívidas...
- Mas para receber esse benefício, precisa ser corrupto. Você é corrupto?
- Não sr. Nem sei direito o que é isso.
- Então não tem jeito. Mas faça o seguinte: volte para a sua cidade, arranje uma ocupação, um endereço fixo, faça seus documentos...
- Mas se eu conseguir tudo isso, talvez eu não precise mais da ajuda do governo.
- É verdade. Mas será obrigado a votar. Toma aqui um santinho.