DITADURA DA FELICIDADE - O FEITIÇO DO TEMPO NO BRASIL

Milton Pires

Alguns dias atrás, antes do ano-novo, um colega de trabalho disse que seu desejo para 2014 era manter sua boca “fechada” - no sentido de falar menos..de não se expor perante pessoas que depois poderiam explorar isso. Observei que era cada vez maior o número de gente com esse “desejo” mas não resisti em fazer a seguinte pergunta: será que as pessoas estão cada vez mais sentindo que se expõem de maneira indevida, ou é o número de assuntos considerados “inadequados” que vem aumentando??

Hoje é dia 7 de janeiro de 2014 – até o início de março o Brasil pode ser invadido por um país estrangeiro, terremotos podem acontecer, Dirceu pode ser libertado da prisão por Dilma..tanto faz: nada vai fazer com que quase 200 milhões de pessoas parem de pensar em ficarem bêbadas e transar. Alguém poderia argumentar que estamos no verão, que aproxima-se o Carnaval, ou que as pessoas estão de férias e aqueles com algum conhecimento de filosofia, não sem alguma razão, podem dizer que depressão e pessimismo não fazem com que um pensamento filosófico se torne original mas, mesmo assim, algo há de errado...

Minha “tese” aqui é muito simples: está proibido ficar “triste” no Brasil! Observem as redes sociais e vocês vão chegar a mesma conclusão. Aquilo que Pondé chama de “praga PC” (politicamente correta) nada mais é do que obedecer rigorosamente à lista de assuntos vetados para se discutir. Causa uma “péssima” impressão em grupo quando alguém fala de política, relacionamentos anteriores, religião, problemas de dinheiro, raiva do imposto de renda, problemas com os filhos, questões de saúde..e por aí vai: a lista não tem fim. Só faz sentido apresentar comentários sobre viagens, fotos de comidas ou bichos de estimação...Só é permitido uma referência ao eterno presente pois qualquer lembrança do passado ou alusão ao futuro, qualquer percepção de que temos uma história prévia e uma possibilidade de transcendência em relação ao tempo atual são de “mau gosto”.

Uma vez escrevi que existe no Brasil um certa espécie de “patologia do tempo”...uma doença que lembra muito aquele filme em que Bill Murray fica preso sempre no “mesmo dia da marmota” e vai às raias da loucura quando percebe que o “tempo não anda” - algo que certamente prova que de brasileiro ele não tem nada, haja visto que esse fenômeno não nos parece causar qualquer incômodo. Vendo e revendo essa história fantástica, é impossível resistir à observação de que, no filme, o “tempo está parado” para todos, menos para Murray que percebe (e é exatamente por isso que sofre) perfeitamente o absurdo da situação, enquanto que no Brasil parece ocorrer exatamente o contrário: todo mundo está feliz porque absolutamente NINGUÉM parece perceber que o tempo está passando, que a realidade política continua imutável, e que o Partido-Religião continua no poder...

“Sedado eternamente em leito esplêndido....” Essa deveria ser a estrofe inicial do Hino do Brasil! Nada mais pode explicar a apatia, a sensação de eterna rotina, de moto contínuo que faz da nação um massa moralmente amorfa que perdeu inclusive a capacidade de perceber a passagem do tempo em que vive. Quantos brasileiros vão lembrar que há cinquenta anos atrás houve uma intervenção militar para livrar o país de uma ditadura comunista??Quantos sabem o que é uma ditadura comunista?? Quantas pessoas são capazes de recordar que há cem anos começou a guerra que definiu o século XX?? Alguém lembra que o mundo precisou se unir contra a Alemanha antes da chegada de Hitler?

“Pega mal” lembrar de alguma coisa, não pega? É uma maneira de revelar a nossa idade e de demonstrar que ao contrário dos bichos nós temos, além da história, essa desconfortável condição que Sartre chamava de “condenação à liberdade” - triste lembrança para que não suporta pensar que existe um futuro, que não vivemos no mais perfeito dos países, com as melhores bundas de mulher, o melhor futebol e o melhor carnaval...numa espécie de inversão do tema de “Feitiço do Tempo”..uma antinomia do “Dia da Marmota” em que o Brasil inteiro, ao contrário do coitado do Murray, ficou preso...... numa Ditadura de Felicidade..

Em memória de Celina Jardim Pires (1917-2000) - um dia a gente se encontra, Vó...

Porto Alegre, 7 de janeiro de 2014.

cardiopires
Enviado por cardiopires em 07/01/2014
Reeditado em 07/01/2014
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