GOGOL E AS NORMAS MORTAS

Há quem diga que o mal de toda sociedade são as normas..Normas sobre o que fazer, sobre o que não fazer..Normas que com o tempo transformam-se em tradições..em leis..em tabus..Ou quem sabe tabus e tradições que depois dão origem às normas... Há quem diga que a própria necessidade de se falar em normas é algo que um dia vai ser história e que talvez a humanidade "evoluída" compartilhe de um chamado "senso comum" capaz de aposentar a necessidade da lei escrita e da manifestação positiva do direito do outro. Talvez seja essa uma época em que há de imperar a empatia - essa capacidade maravilhosamente humana de apiedar-se..de colocar-se no lugar do semelhante e sentir, na própria pele, o seu sofrimento..enfim..uma época que, tenho certeza, não hei de ver..

É, antes do conceito de norma, o conceito de liberdade que vai mudar..que vai tornar-se uma experiência comum que, mesmo sem capaz de ser compartilhada, vai fundar as bases de uma nova sociedade..de um mundo com mais caridade e por aí vai..

Iniciando o texto assim tenho a vontade de deixar a barba crescer mais..de trocar o avental de médico por uma grande camisola branca e de substituir, numa caricatura de profeta, o estetoscópio pelo cajado..rss.. "Sigam o doutor pois a verdade está com ele"...rss

Essa eterna utopia..essa noção de um "reino de Deus" aqui na Terra acompanha a própria história da nossa raça - os desesperados..os seres que contemplam o mundo não como ele é; mas como ele poderia ser. Na raiz de toda utopia é a tristeza, a inconformidade com o real ..o desespero com o que "poderia ter sido" que nos atormenta quando percebemos nossa finitude e quando entendemos a passagem do tempo.

Normas foram feitas para isso - para supostamente tornar melhor "nossa passagem aqui" mas, independentemente do destino da viagem, estão se tornando fonte de eterno sofrimento. Numa inversão estranha, esquecemos que normas são manifestação de esperança; jamais o inverso. A lei não dita a fé, não constrói a tradição, não determina a cultura..Toda história humana prova o oposto e demonstra, de maneira geométrica, que a noção de transcendência permeia toda ação humana que se pretenda grandiosa e que busque ficar na História. Leis não permanecem no tempo...É uma verdade transcendental, incapaz de ser demonstrada, que permanece em cada lei..em cada história da esperança, dessa mesma lei, de alcançar a justiça...

Cômico, não é? Um médico escrevendo sobre a lei..considerando questões do Direito..falando sobre justiça..pensando no tempo e, no fundo no fundo, filosofando..escrevendo e tentando dizer da sua sensação de tempo parado..de perplexidade com um mundo em que ninguém, ou quase ninguém, contempla mais o por vir, o "depois"...e que vive um eterno "agora" sustentado por uma lei que se pretende atemporal e quase eterna..sempre presente mas muito distante pois não faz eco com nenhuma esperança..

Não há, na humilde opinião de um simples médico, escola da Filosofia ou do Direito que substitua esse ato individual de pura volição..que não tem base alguma na experiencia real, e que determina nossa opção pela fé..Por essa capacidade genuinamente humana de acreditar no melhor e numa ideia de bondade eterna que não dependa da ação humana..

Querendo ou não, preciso dizer a vocês que acredito que toda noção de Justiça..toda ideia de Direito deriva dessa capacidade de transcendência..dessa noção de eternidade em que a própria norma não é mais do que mera manifestação, essa sim, temporal..

Destruídas as utopias, encerrados os sonhos, e terminadas as esperanças não há mais sentido em normas..Não há mais o porquê das leis nem das tradições....

Acabou-se todo futuro - Não sei das almas de Gogol; mas as normas estão mortas...

Em memória de Milton Clóvis Pires - meu avô (1917-1990)

Porto Alegre, 16 de agosto de 2013

cardiopires
Enviado por cardiopires em 17/08/2013
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