A nova constituinte e o canto das sereias
Parece que já desistiram da constituinte, mas, de qualquer modo, deixo aí uma comparação; a ideia não é minha, mas o texto é.
Conhecem a Odisseia, de Homero? Bom, simplificando muito, é a estória do retorno de Odisseu (Ulisses) à sua terra, depois da Guerra de Troia. Pra entender o drama: ele passou 20 anos longe de casa (Ítaca), da esposa (Penélope) e do filho, somando o tempo da guerra com o da viagem de volta.
Durante o retorno, teve que passar pelas sereias, cujo canto era mortal. Malandro, Odisseu disse aos seus companheiros que tapassem os ouvidos com cera amolecida. Mas nosso herói - adepto de fortes emoções - queria se deleitar com o canto das sereias, sem ser atraído à morte; para tanto, pediu que o amarrassem ao mastro da embarcação e só o libertassem depois que estivessem longe das sereias - mesmo que ele implorasse. Assim foi feito. Odisseu ouviu o canto, sem correr os riscos.
Certas normas constitucionais correspondem a essas amarras, a que chamamos de autocontenção. O povo, verdadeiro titular do poder, escolheu, num processo belíssimo e participativo de reabertura, a assembleia constituinte que criou nossa Constituição, promulgada em 1988. Ali, o povo, como Odisseu, amarrou-se a alguns pontos essenciais, previstos no § 4º do artigo 60: os direitos e garantias fundamentais; a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; e a separação dos Poderes.
Assim, ainda que, sob forte influência, o povo queira se livrar deste compromisso consigo mesmo, as cordas estão ali e os verdadeiros camaradas cumprem o combinado; por mais que as sereias cantem e seduzam, o melhor é não mexer na autocontenção.
A convocação de uma nova constituinte não é só perigosa pela possibilidade de supressão de direitos. A ideia por si só é muito arriscada. Explico: há uma crise de representatividade, parece que a maioria não concorda com a atuação dos parlamentares; assim, o que garante que, ao eleger os tais componentes da nova constituinte, escolheremos representantes melhores? E mais: hoje é a Dilma, do PT, e o momento é de manifestações populares. Amanhã, pode ser Fulano, de um partido esquisito, num contexto de fúria elitista. E aí?
Há um dado importante que não está sendo considerado nesse papo de nova constituinte. As emendas constitucionais podem ser apreciadas pelo STF, o qual exerce o famoso controle de constitucionalidade, que é simplesmente verificar se o texto da emenda ou lei viola algum dos alicerces da Constituição.
Desta forma, as questões que se colocam são: o texto de uma nova constituinte poderá ser apreciado pelo STF? Ou por ser originário, não poderá ser objeto de controle de constitucionalidade? A constituinte seria parcial - restrita a pontos preestabelecidos -, caso ultrapassasse esses limites, quem exerceria algum controle?
Portanto, mesmo na hipótese absurda de uma nova constituinte, entendo que o STF poderá apreciar o texto final, a fim de assegurar que a reforma não poderá abolir os pontos fundamentais mencionados acima, e que não poderá sair um milímetro dos limites prefixados.
Já pensaram no assunto?