A POLÍCIA QUANDO BATE, GOZA! DESDE 1879.
No final do século XIX, não havia internet e, consequentemente, também não havia essas chamadas redes sociais, a que se atribui a responsabilidade por qualquer movimento de massa, com sucesso, e pela divulgação de qualquer coisa que alguém faça ou acredite e ponha no ar por essa nova “media”, a correr como a velocidade da luz, a credibilidade da coisa “postada”.
E também não havia o Rádio como se conhece hoje, pois a primeira transmissão precária e tímida só ocorreu no Rio de Janeiro no dia 7 de setembro de 1922, quando o Grito da Independência do Brasil, também chamado de Grito do Ipiranga, completava 100 anos. Grito esse que provavelmente não aconteceu já que as únicas evidências de que dispomos são os quadros pintados a óleo existentes. Um por Pedro Américo, em Florença na Itália, 66 anos depois. Nele todos, os militares e Dom Pedro I, estão com uniformes de gala uma impossibilidade para viagem, montados em elegantes cavalos, quando se fazia o longo trajeto rio/São Paulo sobre mulas. Além disso, Dom Pedro I está com cara de quem já ganhou, e espada em punho, quando na verdade estava com diarreia. Há quem afirme que a obra é um plágio da tela “l807 Friedland”, de Ernest Meissonier, pintada em 1875, retratando a vitória de Napoleão Bonaparte na Batalha de Friedlând, na Rússia. A semelhança é chocante. O outro quadro, pintado por René Moreaux, um pintor Frances residente no Rio de Janeiro, em 1844, mostra com Dom Pedro I montando um belo cavalo, de chapéu erguido entre uma alegre turma de adultos e crianças. De qualquer maneiro, ao que parece, o Brasil conquistou sua independência no grito.
Pois o discurso do presidente Epitácio Pessoa abrindo a Exposição do Centenário do tal Grito da Independência, em 1922, foi transmitido para aparelhos receptores instalados em Niterói, Petrópolis e São Paulo, por uma antena instalada no Cristo Redentor. Mas o rádio, naquela época, não era imprensa pelo simples fato de que não era impresso; portanto jornalismo se fazia nos jornais.
Em 1879 a população do Rio estava insatisfeita com o transporte público da cidade, capital do então Império do Brasil com 14.000 habitantes, já naquela época caro e ruim, como é até hoje, há 134 anos.
Foi o primeiro protesto contra o preço alto de serviço público; caro e de má qualidade. Outros tantos com passeatas, vandalismo, políticos infiltrados explicitamente, cartazes, bandeiras,rostos coberto e a polícia batendo e gozando quando bate, viriam a acontecer ao longo desse mais de um século.
Assim é forçoso admitir que nada muda com o povo na rua protestando – não muda nada pra sempre, pois apenas resolve por um momento e o que era motivo do protesto volta a acontecer novamente; de tempos em tempos,15/20 que é o tempo que os grupos políticos com projeto de poder se plantam no governo.É histórico aqui nessa terra da palmeiras e dos sabias.
Diz a maior parte da imprensa e os apresentadores de TV, que esses protestos desses últimos dias são históricos (antes do fato se tornar histórico!) e que isso é democracia.
Não creio. ”Acho que não nasci para aceitar as coisas tal como estão”, repetindo o que disse Julio Cortazr em seu livro O Jogo da Amarelinha, com pretensão e admiração. Democracia, como sendo o povo exercendo apenas a soberania da liberdade de expressão, reduz o conceito desse sistema - ou regime - a tal simplificação, e simplista torna-se uma utopia posta em prática. Há varias formas de democracia mundo afora. A democracia da Grécia Antiga nada se parece com a que os gregos têm hoje; assim como a da Roma republicana na Itália de hoje. Com a Revolução Francesa surge a chamada democracia moderna e com a independência dos Estados Unidos o primeiro Estado Democrático com três poderes independentes e harmônicos entre si.
Assim também é no Brasil, apesar de suas duas ditaduras passadas, hoje com sua mais nova Constituição, de 1988, em seu 1º Artigo garante que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos dessa Constituição”.
Não entendo como pode o povo exercer poder sobre si mesmo através de representantes; poder não se delega, se exerce. E não sei como poderia todo o povo, ele mesmo, exercer esse poder; imagino 200 milhões de brasileiros tratando e decidindo unanimemente de economia, política externa, educação, saúde, segurança, investimentos, obras, guerras contra outras nações, revoltas internas, protestos e passeatas populares.
Cada país democrático tem sua maneira de por a democracia em prática; de acordo com suas tradições, seus hábitos, seus usos e seus costumes. A Turquia de hoje, por exemplo, porque não sai do noticiário, é uma nação democrática, republicana e parlamentarista com transporte público mil vezes melhor do que o nosso (mais de dois mil km de autoestradas, nós não temos nenhum só km) nas principais cidades, com metrô, trens de alta velocidade, VTL, ônibus e os “dólmuxes”, uma espécie de “lotação” com 20 lugares e uma particularidade que jamais seria aceita no Brasil. Enquanto os demais meios de transporte público têm tarifas fixas, o preço da viagem nos “dólmuxes” é cobrado por rota seja lá a distância que percorra; se uma rota for de 10 km, por exemplo, e o passageiro andar por apenas 3 km ele paga o preço de todo o percurso. Com 50 partidos políticos, um complexo estrutura eleitoral, restrições há todas as formas de liberdade, entre elas de expressão e um sistema judiciário que se sobrepõe ao legislativo, além de inúmeras restrições religiosas, os turcos estão nas ruas, melhor numa praça, tentando impedir a construção de um shopping Center e bradando por democracia, diz a imprensa. Não creiam nisso; como não creiam na “Primavera árabe” inventada pela imprensa americana. Além disso, os turcos falam turco e não árabe e são, em sua maioria (90%), muçulmanos.
Lá, como no Brasil desses dias de paus e pedras, o povo não faz apenas uma reivindicação, nem protesta por uma única causa; são várias. Aqui começou com a tarifa de ônibus e hoje, 10 dias depois, não se conta mais o número de reivindicações, pois são tantas, e as criticas e protestos sem uma liderança única, visível, identificada com a maioria do povo e por ele aceita. Sem esse líder o movimento tende a desfazer-se lentamente dando lugar, cada vez mais, aos vândalos, aos saqueadores; estes mais e mais em evidência, mostrados a exaustão pelas emissoras de televisão; espetácularisando os acontecimentos – como é próprio desse meio – legitimando a ação truculenta da polícia, desproporcional, prestando aos exaltados o mesmo tratamento que dão a andidos de todas as claces, traficantes,assassinos,assaltantes e demais sacripantas de nossa sociedade. E faz com emocionados narradores (as) confundindo jornalismo – que deve ser imparcial - com opiniões particulares “como mãe”, “como cristão” ou “como brasileiro” – nesse caso como se nas ruas estivessem klingons, vulcanos e outros ETs protestando, além de outras estultices como dizer que os manifestantes “estão na Avenida Ipiranga, no Centro Histórico de Porto Alegre”(!). E é pela televisão que aparece a Presidente da República, que insiste com a bobagem de flexionar o adjetivo presidente ao gênero feminino, falando na primeira pessoa do plural, o pronome da multidão nas ruas, como se ela mesma fosse uma manifestantA.
De volta a 1898 e ao mesmo protesto que sem internet e as ditas redes sociais foi liderado por um jornalista que convocou a população pelo jornal Gazeta da Noite. Lopes Trovão líder do protesto, médico, militante republicano e jornalista, usou o silêncio das letras impressas para convocar o povo a protestar contra o aumento de 20 réis, o que correspondia a um vintém, na tarifa dos bondes puxados por burros – esses de quatro patas. Uma multidão de cinco mil pessoas – de uma população de 14 mil habitantes – reuniu-se no Campo de São Cristóvão; hoje um tradicional reduto de migrantes nordestinos, depois de ter andado pelas ruas do centro do Rio aplaudindo os jornais de oposição. Com a chegada da polícia, o povo, aquela altura já impaciente (que a história oficial os estigmatizou com a pecha de “revoltosos”), agiu com violência matando a facadas os burros, espancando os também indefesos condutores dos veículos, arrancando trilhos com as mãos e virando os bondes. A polícia que goza quando bate, foi insuficiente ou incompetente para lidar com os “revoltosos” e tiveram a ajuda do Exército. Com a chegada das tropas militares o protesto, das classes media e baixa daquela época, ficou incontrolável. “Fora o vintém” era a palavra de ordem que gritavam enquanto atiravam paralepípedos arrancados do calçamento. Quando uma dessas pedras atingiu a cabeça de um coronel do exército, policiais e militares, então – sem as bombas de efeito moral, esprei de pimenta e as balas de borracha de hoje – abriram fogo contra os manifestantes. Dezenas de centenas deles foram mortos com tiros de fuzil e de revolver e outro tanto mais ficou ferido.
A manifestação durou de 28 de dezembro de l879 a 1º de janeiro de l880. O preço da passagem dos bondes voltou ao que era. Vitória do povo nas ruas. Mas apenas por uns tempos; e o povo voltou às ruas centenas de vezes por milhares de motivos de lá até hoje; repetindo-se há 134 anos.
Dia destes dessa semana li num cartaz, certamente feito às pressas e no meio da rua em meio ao protesto, o que me parece ser a síntese de tudo: ”não é por centavos, é por direitos”. Um claro recado que deve tirar a dúvida de quem ainda não entendeu os protestos generalizados por capitais e outras cidades do Brasil. Ou, talvez, quem sabe, ao invés de recado seja uma advertência posta em prática.
Todavia outros protestos ainda tomarão as ruas das cidades brasileiras, de tempos em tempos, pois esses dias de hoje são apenas uma das minúsculas partes das práticas da democracia. Desaparecerão das ruas, por completo, porém, quando, tão somente, as bases da democracia desse nosso brasilino regime presidencialista de representação forem reconstruídas, refeitas em toda a sua integridade. Todos com padrão FIFA. Se não, os vândalos de todos os tipos (na política, no sistema financeiro e nas igrejas, em especial, e certos tipos na indústria, no comercio, nos hospitais e postos de saúde, nas repartições públicas, na imprensa, nas escolas dos três níveis de educação e outros mais que vandalizam nos preços altos e nos serviços de péssima qualidade, cada um a sua maneira, a sociedade brasileira) continuarão agindo sob o manto da democracia; e o povo em geral – que rejeitam a participação de partido políticos porque eles representam a si mesmo - sairá mais uma vez às ruas para protestar- que é a maneira democrática de mudar o que está errado - e a polícia voltará a bater e gozar enquanto bate.