A LUTA NÃO COMEÇOU HOJE

A LUTA NÃO COMEÇOU HOJE

É próprio de um povo sem memória e de pessoas arrogantes achar que a cada instante foi inventada a roda e que cada ascenso de lutas é um fato singular, inédito e irrepetível. Essa mobilização que estamos vendo e fazendo é maravilhosa, mas eu gostaria de tê-la visto antes, nos meus 13 anos de militância política, estudantil, secundarista e universitária, e também sindical, desde os meus 15 anos de idade, quando lutávamos pelas mesmas coisas, aliás, programaticamente até mais avançados, pois não queríamos barrar o aumento das passagens, queríamos manter o Passe Livre, que sabíamos e reconhecíamos que havia sido conquistado por aqueles que vieram antes de nós.

A minha geração finalmente conheceu o ascenso; é um ascenso sindical, não é um ascenso revolucionário, mas é um levante juvenil e popular de grandes proporções. No entanto, me parece que falta politizar o debate e a luta, que é sempre política. Nós que fomos os primeiros da nossa geração, os nascidos na década de 80 e que chegaram à adolescência e à juventude no final dos anos 90 e início dos anos 2000, iniciamos essa forma de articulação política pela internet, por blogs e redes sociais, participamos das lutas contra a globalização financeira, da campanha contra a ALCA, das manifestações contra a Guerra do Iraque, da campanha contra a ocupação militar brasileira do Haiti, dos atos pelo Passe Livre, dos atos contra Bush e Obama no Rio de Janeiro e no Brasil, do Fora FHC e o FMI, das greves das universidades e escolas federais, das greves de profissionais de educação das redes municipais e da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e de outros estados do Brasil, apoiamos a greve e a mobilização dos bombeiros do Rio e a luta em defesa dos povos indígenas e do Museu do Índio, formamos um cordão de solidariedade em torno da ocupação do Pinheirinho e de todas as ocupações da Reitoria da USP e das ocupações de reitorias na luta contra o ReUni, contra a Reforma Universitária e na greve nacional estudantil de 2005 e participamos delas, participamos da luta contra a Reforma da Previdência, participamos do Fórum Social Mundial, das marchas contra o mensalão e contra a corrupção, das lutas contra as privatizações, da campanha contra as dívidas externa e interna e organizamos os plebiscitos populares da dívida e da ALCA, que recolheu 10 milhões de votos no Brasil todo e serviu para enterrar esse projeto do imperialismo de uma vez por todas. Nós apanhamos mais de uma vez da polícia, fomos ameaçados de expulsão de nossas universidades e com processos administrativos em nossos trabalhos, fomos presos políticos e passamos efetivamente pela prisão em presídios. E tudo isso serviu como uma escola política; nós nos politizamos e fizemos parte de um movimento plural e verdadeiramente democrático e livre, aprendemos isso na prática e foi essa prática generosa e democrática que manteve o movimento vivo até hoje, mesmo no deserto do refluxo, mesmo quando muitos só cuidavam de suas vidas e diziam que aquilo que nós fazíamos não servia para nada e, infelizmente, digo com tristeza que isso se aplica a muitos jovens da minha geração, que também dormiam no sono neoliberal e sonhavam com um futuro de conquistas pessoais, evidenciando um forte individualismo e hedonismo. Felizmente, muitos despertaram com o restante do Brasil. Entenderam que esta democracia é para os velhos que se venderam ou que desistiram de sonhar e de lutar. Muitos se voltaram contra seus pais que lhes ninaram e lhes mimaram, fazendo parte desse grande esquema de propaganda enganosa elaborado pelo sistema capitalista e pelos donos do poder. Uma promessa que não pode ser cumprida diante da realidade da crise econômica mundial. Alguns precisam levar um choque para despertar. Nós passamos por uma escola de guerra; temos as marcas e as cicatrizes em nossos corpos e em nossos espíritos; e aprendemos na porrada como travar uma luta sem trégua, com inteligência, coragem e organização.

O meu primeiro ato de rua foi o ato do Dia Nacional de Luta dos Estudantes, que acontece todo dia 28 de março em memória de Edson Luís, mártir do movimento estudantil brasileiro, símbolo das nossas lutas, que só quem fez movimento estudantil ou se envolveu nas lutas e discussões políticas desde cedo em sua vida de estudante, estando em partido ou sendo independente (vivi as duas realidades), conhece e reverencia. Aprendemos o respeito àqueles que lutaram antes de nós e fazemos do seu exemplo a nossa força. A luta é bela, mas a luta não começou hoje e não terminará com o fim desses protestos. Foi a morte de Edson Luís o estopim do ascenso estudantil de 1968, que culminou na Passeata dos 100 mil. Não escrevo essas palavras como um tradicionalista. É preciso ser iconoclasta; mas, na história, vários reacionários também o foram. É preciso romper com o velho, mas entendendo que, assim como o novo brota do velho, as tradições e a memória também compõem a utopia. As mobilizações da juventude brasileira refletem o mesmo sentimento de revolta que esteve presente nos jovens do movimento Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, dos Indignados, da Espanha, da Ocupação da Praça Tahrir, no Egito, e da Revolução Islandesa. É uma luta anticapitalista inconsciente. É a radicalização do movimento por uma nova globalização, iniciado com a manifestação de Seattle em 1999. É talvez o último rebatimento do movimento da contracultura da década de 60. É a continuidade da luta dos jovens cara-pintadas do Fora Collor, que também se insurgiram contra a corrupção. Estamos completando a luta iniciada pela juventude de classe média que enfrentou a ditadura militar, tentando concluir o que estes agora já velhos não tiveram coragem de levar até o fim: a efetiva democratização do país, com uma democracia participativa, ampliando os mecanismos de democracia direta e de participação popular e cidadã e a punição dos criminosos da época da ditadura, os torturadores e assassinos do passado, para que a sua impunidade não sirva para legitimar a repressão policial e governamental de caráter fascista de hoje.

Os sindicatos precisam abraçar essa mobilização. Devem tirar moções de apoio e aprovar dias de paralisação e realizar debates, além, é claro, dos trabalhadores, os pais desses jovens, e da juventude trabalhadora participarem efetivamente dos atos. Os partidos, movimentos e organizações de esquerda, os sindicatos e entidades estudantis devem iniciar um movimento de ocupações de praças públicas, a começar pela Cinelândia e manter vivo o movimento e dar a ele maior organização e uma mobilização permanente. As entidades estudantis secundaristas e universitárias podem, de imediato, aprovar greves estudantis e preparar a greve geral nacional, buscando a aliança com os trabalhadores. Somente assim será possível isolar os jovens reacionários que se infiltram numa mobilização que estava aí bem antes deles e de suas reivindicações confusas, mas de direita e antidemocrática, e derrotar a máquina de propaganda da grande mídia. Os jovens sonhadores e progressistas devem aderir a um projeto maior do que fazer alguns atos, mesmo que massivos. Queremos construir o futuro e não fazer um ato puramente estético e uma catarse. A luta é dura e séria e a unidade e a pluralidade são fundamentais para a vitória.

Rafael Rossi