“Passe Livre”, um movimento desorganizador
Nos últimos dias, São Paulo tem enfrentado problemas de transporte e de segurança em razão do Passe Livre, movimento que protesta contra o aumento da passagem do transporte público, ônibus e metrô. O aumento de R$ 0,20 na condução pode até parecer pouco, em termos monetários ou percentuais, mas não é. Para quem recebe um salário mínimo por mês, gastar R$ 6,40 por dia somente com transporte público não é pouca coisa. Aliás, esse valor é alto até para quem não ganha apenas um salário mínimo.
Se a passagem tivesse sido aumentada em apenas R$ 0,01 também seria cara; se não tivesse sofrido aumento algum, também seria cara. Cara porque não há transporte público suficiente para atender, de maneira confortável (ou respeitável), a toda população. Cara porque há ônibus em péssimas condições de uso. Cara porque o transporte público deveria cumprir o seu papel de realmente ser público e atender ao público em geral, e não apenas àqueles que não podem comprar um automóvel para se locomover. Cara porque deveríamos estar pensando em formas de fazer com que parte da população não utilize automóvel para ir ao trabalho e assim melhorar o trânsito, a qualidade do ar e do planeta. Enfim, cara porque o transporte público deveria ser um direito fundamental.
Aqui cabe um parênteses em forma de parágrafo. A Constituição Federal, artigo 5º, discorre sobre direitos fundamentais à sociedade (direito à saúde, direito à educação, direito à informação etc.), garantias que devem ser asseguradas pelo Estado, pois são essenciais à sobrevivência do sujeito. Assim, por que o transporte público não é visto com esse caráter de essencialidade? Por que o Estado não vincula parte da arrecadação tributária à manutenção do serviço de transporte público? Por que o Estado deixa à mercê da especulação privada um serviço que é essencial? Por que não é dada nenhuma solução humanitária a esse problema? Por que...?
Voltando ao Movimento Passe Livre, nos últimos dias, esse movimento tem desorganizado a rotina dos paulistanos. Isso é fato. Sobre o assunto, tenho escutado comentários como: “Lá vêm esses baderneiros!”, “Por que eles não vão reclamar sobre os buracos nas ruas?”, “Ah, não!... hoje é dia da manifestação por causa do preço da passagem! Vou chegar em casa tarde outra vez!”, “Quanto vandalismo!”, “Esses desocupados só ficam fazendo bagunça para aumentar o trânsito!”, “Lá vem esse povo quebrar tudo!”. Ainda não ouvi ninguém se manifestando em apoio ao movimento. Isso é triste porque denota um conformismo muito enraizado, mas que é, se as regras semânticas da língua portuguesa me concederem licença, “tacitamente expresso” e percebemos comportamentos que parecem gritar: “pode piorar que a gente aguenta!”.
No Brasil, não temos o hábito de querer ouvir ou entender a reivindicação de grevistas ou de manifestantes, estes comumente são tachados de “desocupados”, “vândalos” etc. Não vou fazer discurso reclamando do individualismo, da busca de manutenção do status quo da denominada “classe média”, da alienação de boa parte da população... Não, não vou fazer isso. Acredito que essa questão seja cultural. Temos uma predisposição ao não agir politicamente, a não chamar para o debate.
Ao fazer essas considerações, não quero que pensem que sou favorável à depredação do patrimônio público, mesmo porque não conheço ninguém que defenda isso. No entanto, temos que compreender que uma multidão é incontrolável, reúne pessoas com interesses e comportamentos diferentes. Há pessoas que comparecem a esses encontros apenas para aparecer ou para fazer barulho. Enfim, há de tudo! Pelas imagens divulgadas, percebemos que há excessos tanto por parte de manifestantes quanto por parte da polícia, a qual deveria estar melhor preparada para lidar com esse tipo de situação. Também não é possível deixar de notar que nem em época de ataques do PCC víamos tantos policiais na rua como vemos agora para conter e agredir manifestantes.
Bem, sobre esse assunto haveria ainda muita coisa a ser dita, como a cobertura da mídia, a posição dos governos (estadual e municipal), dentre outros, mas eu prefiro parar por aqui porque o que considero mais importante é a reflexão sobre nosso comportamento político. Atrás de cada movimento ou manifestação sempre há uma questão muito maior, que merece ser discutida por todos, mesmo que a intenção dos envolvidos nos movimentos seja mais pontual. No entanto, temos o hábito de não dar importância necessária a manifestações. E perdemos a oportunidade de refletir sobre questões como as que foram levantadas no terceiro parágrafo deste texto; em vez disso, damos vazão a derivações menores ou inoportunas e, muitas vezes, preconceituosas que desvirtuam a questão política que há por traz de cada movimento como esse. Por isso, as manifestações costumam ser representadas com importância reduzida ou com os envolvidos ridicularizados. Poucos param para pensar que os manifestantes têm, sim, o que fazer, e o fazem: escolhem manifestar o seu descontentamento com os rumos das políticas que nos são impostas e que nos descem goela abaixo.
Menos do que o trânsito, o Movimento Passe Livre deveria nos servir para desorganizar nossas ideias e nos fazer questionar nossa relação com o Estado.