Civil ou Ser Vil
Existe uma verba pública a que têm direito senadores, deputados federais, estaduais e talvez vereadores também. Trata-se da verba indenizatória, um numerário destinado a aluguel de carros, combustível, gastos em restaurantes, selos para correspondência e outras despesas pessoais. Não se tem notícia, pelo que sabemos, de que tenha havido um questionamento mais incisivo ou um procedimento jurídico destinado a reduzir ou acabar com esse tipo de distinção.
O cidadão comum pleiteia agora o direito à “desaposentadoria”, isto é, obter a correção do valor da sua pensão em função de ter voltado a trabalhar. E o governo, constituído eventualmente por senadores, deputados federais, estaduais e talvez até por vereadores, já realiza manobras no sentido de evitar essa concessão.
Por outro lado, sabemos que o cidadão comum não dispõe da prerrogativa do aumento do próprio salário, como os políticos, incluindo, aí sim, os vereadores. Quando se fala em aumento para os trabalhadores, governantes e empresários são unânimes em anunciar como certa a majoração dos índices inflacionários, se o aumento for autorizado nos termos pleiteados. Tem que ser concedido nos menores valores possíveis. Quando Getúlio Vargas aumentou em 100% o salário-mínimo, só faltou ser crucificado pela elite e pelos empresários. No entanto, nunca foi objeto desse tipo de contestação o aumento que os políticos há anos concedem a eles mesmos. E que não precisa chegar a 100%, já que seus salários nunca estiveram aviltados.
Uma outra distinção que se pode observar nas classes produtoras ou trabalhadoras, dentre as inúmeras tarefas a que se dedicam os cidadãos, diz respeito à atividade civil ou militar. Numa paródia ao antigo quadro do comediante/humorista Jô Soares, podemos dizer que “o professor ensina, o cirurgião corta, o jogador joga, o dentista tira o dente, a cozinheira cozinha, o escritor escreve... Mas o militar milita”. E de forma específica. Que normalmente não tem paralelo com a do militante político ou do engajado em causas sociais ou civis. Já que se trata do militante treinado para a realização, fora dos quartéis, de tarefas que se desenvolvem na caserna.
Dentre as diferentes atividades que se aprende nos quartéis das forças armadas, está o ensino de procedimentos que têm por fim a eliminação física de um possível oponente. No caso de objetivos não declaradamente tão coletivos, como guerras, porém mais individualizados, deve-se aprender, por exemplo, a atirar na parte do corpo de uma pessoa em que as chances de sobrevivência sejam mínimas. Como também identificar o melhor tipo de armamento ou munição com os quais estará garantido o sucesso desse empreendimento.
Do mesmo modo, a tortura pode ser objeto de aulas teóricas, possivelmente até práticas, em certas dependências militares. Aqui e no exterior. (Há quem diga que Tamerlan, o checheno da Maratona de Boston, foi preso vivo, tendo depois seu corpo apresentado marcas de tortura e ferimentos de tiros, até ser declarado morto.) Seria leviana uma afirmação categórica nesse sentido, mas há uma possibilidade concreta de que isso ainda ocorra. Não se podendo admitir que tais ensinamentos aconteçam na sala de aula de uma universidade, no escritório de uma firma de contabilidade, numa fábrica de caixas de bom-bom ou numa loja da Vitoria Secret. Como golpear alguém sem deixar marcas em seu corpo. Ou como golpear alguém com violência sem o risco do óbito, etc.
Os procedimentos de tortura física (ou moral) destinados à obtenção de uma confissão à força são característicos, de um modo geral, de organismos militares ou afins. E realizados, portanto, em quartéis, presídios, delegacias ou lugares de que o cidadão comum ou a sociedade não tenham o mínimo conhecimento.
Só isso explica o Massacre do Carandiru, em que mais de 200 pessoas perderam a vida, segundo o depoimento de um detento. Quase o dobro das 111 mortes oficiais ou contabilizadas pelo Estado. É claro que muitas vezes nos deparamos no noticiário com crimes cometidos de forma tão impiedosa e violenta que, numa reação imediata, desejamos que com seus autores acontecesse o mesmo. No entanto, a eliminação física de mais de 100 pessoas presas e desarmadas só pode ter um nome – extermínio ou assassinato em massa. Para esse tipo de procedimento é preciso que se esteja adestrado. Física e moralmente.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado à cena veiculada agora pelas TVs em Cavalcante, Rio de Janeiro, com pessoas ajoelhadas na calçada, à luz do dia, sendo executadas a tiro. É pouco provável que sem determinado tipo de adestramento militar qualquer um consiga realizar essa tarefa. Compreendendo tal adestramento não só a perícia na ação como a garantia da frieza no comportamento.
Por isso, talvez possamos afirmar, sem muita margem de erro, que as forças de segurança civis são, de certa forma, um apêndice das forças de características estritamente militares. Sendo por isso também que constatamos, sempre a partir do noticiário, o envolvimento de policiais militares ou civis em execuções sumárias na periferia de São Paulo e até no Estado do Rio de Janeiro, como foi o rumoroso caso da juíza de São Gonçalo Patrícia Acioli. E ainda Goiás, Santa Catarina, Paraná, etc., para ficarmos com exemplos de maior repercussão. O que pode explicar a utilização de slogans como “bandido bom é bandido morto”, atribuído a um político do Rio de Janeiro, não fosse seu criador um delegado da polícia civil possivelmente familiarizado com algum tipo de adestramento militar.
Também pode ser reconhecida na Guarda Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro – a maior guarda civil desarmada do país – certa postura militar, identificada inclusive pelas designações (siglas com números) de seus setores de trabalho, tão comum em instituições da mesma natureza. Muito provavelmente todas as guardas civis municipais no país são comandadas por militares reformados.
Por outro lado, não chegam a ser curiosos os procedimentos habituais a que estão submetidos os alunos de colégios militares, como o do Rio de Janeiro, no Maracanã, em seus exercícios de instrução fora de sala de aula. As perguntas feitas aos gritos pelos instrutores devem ser respondidas em voz igualmente alta pelos alunos, conforme o que escutam em seus apartamentos os moradores da vizinhança. O mesmo deve acontecer em quartéis do Exército, Marinha e Aeronáutica. Com a agravante de que, em certos exercícios de instrução, alguns aspirantes ou soldados iniciantes são tão exigidos que acabam não resistindo e até morrem. Normalmente não chegando ao público o esclarecimento de tais casos. O que pode acontecer, de fato, no mundo todo. Na verdade, são procedimentos militares usuais. Que não podem fazer parte do cotidiano civil. Não se pretende a condenação de nada. Apenas o estabelecimento de distinções.
De qualquer modo, o civil não é páreo para um militar adequadamente adestrado. Ainda que o primeiro seja marrento, brigão, maluco ou um grande lutador de artes marciais. Como o cidadão comum também não é páreo para os políticos que ele elege de vez em quando, quando esse cidadão não se relaciona a atividades ilícitas que contam, na maior parte das vezes, com o concurso de inúmeros detentores de mandatos eletivos.
Rio, 15/04/2013