Paradoxo Militar no Brasil

Todo final de março e começo de abril é a mesma coisa, a esquerda alerta para os malefícios históricos de uma ditadura militar e a direita reacionária vangloria-se de ter livrado o Brasil de uma suposta revolução comunista. O certo é que os militares representam um importante personagem político na república brasileira. Façamos uma breve reflexão.

O Brasil se tornou independente em 1822, estabelecendo um regime monárquico que perduraria por algumas décadas. Durante muito tempo, o Império permaneceu desprovido de um corpo militar regular. Foi preciso um grande conflito armado para isto se tornar uma preocupação. No Segundo Reinado, o Brasil se envolveu em um confronto significativo com os vizinhos paraguaios. Na ocasião, o exército brasileiro foi formado, em sua maioria, por escravos. A campanha dos militares brasileiros na Guerra do Paraguai despertou a atenção para as carências defensivas de nosso país, estimulando a formação de um corpo militar regular. No restante do Segundo Reinado, as causas militares ganharam força e, conciliadas a outras contestações ao reinado de Dom Pedro II, estiveram na linha de frente para Proclamação da República no Brasil.

A república brasileira nasceu com os militares na liderança. Identificada por nós hoje como República da Espada, seguiram-se dois presidentes militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Outras forças políticas estavam em jogo no momento, porém, atualmente, são poucos os defensores de um regime monárquico no país. Com eles foi promulgada a primeira Constituição do Brasil republicano. Mais tarde, ainda na Primeira República, outro militar se tornaria presidente, o Marechal Hermes da Fonseca. Este foi eleito por voto direto, vencendo a chamada Campanha Civilista de Ruy Barbosa. Hermes não levaria o militarismo ao Estado, ele representava a disputa pelo poder de grupos oligárquicos em cena. Seu governo foi marcado pela queda na exportação de café e borracha, resultando em crise. Enfrentou ainda uma revolta de marinheiros que contestavam os maus tratos. A Revolta da Chibata foi reprimida e vários dos revoltosos foram assassinados.

Na década de 1920, oficiais de baixa e média patente lideraram movimentos de contestação à situação política no Brasil. A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, a Revolução de 1924, a Comuna de Manaus e a Coluna Prestes, em linhas gerais, buscavam reformas na estrutura do poder no país, desejavam o fim do voto de cabresto, a instituição do voto secreto e melhorias no sistema educacional público. Temos de convir que eram pontos de significativo avanço democrático. No entanto, o que ficou conhecido como Tenentismo não logrou sucesso, mas manteve viva a contestação ao poder das oligarquias. Abriu caminho para a Revolução de 1930 e o golpe de Estado que colocou Getúlio Vargas no poder por mais de uma década.

A Revolução Constitucionalista de 1932 foi a última grande revolta armada ocorrida no Brasil. Embora tenha sido utilizada força militar no confronto entre o estado de São Paulo e o governo nacional, não se tratava de um movimento político liderado por militares. Era, na verdade, a resposta do oligarquia cafeeira de São Paulo por ter perdido o governo do país. Ela tentava derrubar o que ainda se chamava de governo provisório de Getúlio Vargas e promulgar uma nova Constituição. Esta viria dois anos depois, mas Vargas ficaria no poder até 1945, iniciando uma ditadura em 1937. Com o desgaste de seu governo ligado a fatores nacionais e internacionais da época, Getúlio Vargas foi deposto em 1945 e lá estavam os militares novamente.

A deposição de Getúlio Vargas com a entrada de tropas do exército no Palácio do Catete marcaria o início de uma ascensão que levaria os militares ao poder político absoluto. Vargas foi substituído pelo General Eurico Gaspar Dutra, que venceu o Brigadeiro Eduardo Gomes nas eleições presidenciais. Era o fim da Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria, começava a caçada aos comunistas no mundo. O presidente militar desenvolveu um govermo mais liberal, empreendeu grandes obras públicas e investiu em um frustrado plano de desenvolvimento para saúde, alimentação, transporte e energia. No final de seu mandato, Getúlio Vargas foi eleito presidente pelo voto direto.

Após o suicídio de Getúlio Vargas, sucederam-se presidentes interinos até a eleição, em 1955, de Juscelino Kubitscheck. A oposição, encabeçada à época pela UDN (União Democrática Nacional), tentou impedir a posse de Juscelino. As Forças Armadas também estavam descontestes em função da ligação do candidato eleito com o PTB. No entanto, foi uma junta militar liderada pelo Marechal Henrique Lott que assegurou a legalidade da eleição de Juscelino. O dito Movimento 11 de Novembro garantiu a segurança do candidato eleito, afrontando a oposição, e a posse.

A atuação política dos militares, contudo, vinha crescendo desde Eurico Gaspar Dutra. Na década de 1960, a paranoia comunista já havia tomado a cabeça dos militares e os projetos de desenvolvimento social do presidente João Goulart incomodavam a elite brasileira. Os trabalhadores conquistaram espaço no início da década, movimentos organizados se apresentaram e o presidente discursava em prol de melhorias para a classe operária. No auge da Guerra Fria, tudo que estava em desacordo com os interesses do capital e com a doutrina estadunidense era taxado de comunismo. João Goulart defendia a reforma agrária - uma afronta à elite e ao poder latifundiário -, queria reduzir a participação de empresas estrangeiras em setores estratégicos da economia e defendia outras reformas de base para crescimento econômico mais igualitário. No entanto, isso não se converte automaticamente em comunismo. Os defensores do Golpe Militar de 1964, que hoje se julgam patriotas, se esquecem que o regime abriu a economia brasileira para exploração internacional e o país absorveu uma doutrina e um modo de vida claramente estadunidense. Neste ponto, parece-me que João Goulart era mais patriota, defendia o crescimento brasileiro potencializando suas forças.

Quando, em comício realizado na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, João Goulart declarou que iniciaria as reformas de base no país, foi imediatamente taxado de comunista pela oposição. Claro, era o melhor argumento da época. Toda a cultura ocidental foi induzida pelos Estados Unidos a identificar o comunismo como algo "do mal". Nesta época, era comum o mito de comunistas que comiam crianças. Com o apoio da imprensa, a oposição desenvolveu uma campanha para convencer a população que João Goulart faria do Brasil um governo comunista ao modelo de Cuba, China e da matriz União Soviética. A situação do presidente ficaria mais grave por assumir uma política internacional neutra, relacionando-se com países ditos comunistas e também com os capitalistas. A intenção dos Estados Unidos era isolar esses países do mundo, o que se refletia imediatamente nas ideias conservadoras dos políticos brasileiros. É verdade que antes do golpe João Goulart estava na China, mas tratava-se apenas de uma viagem diplomática. Jango não tinha forças para uma transformação tão grande no país e nem demonstrava querer um regime comunista. Seu discurso e seus atos prezavam pelo crescimento compartilhado, queria melhores condições de vida para os brasileiros e um governo independente da polarização da Guerra Fria. Obviamente, para dar aos pobres era preciso tirar privilégios dos ricos, que jamais aceitariam abrir mão de seus benefícios. Com tamanha ameaça, os militares tomaram o poder.

Tamanho era o risco de uma revolução comunista no Brasil que João Goulart nada fez quando o golpe foi deflagrado. Sem esboçar nenhuma reação, já que ainda teria o controle da Guarda Nacional, retirou-se para o Rio Grande do Sul e abriu espaço para um novo regime. Muito provavelmente, João Goulart perderia nas urnas em uma próxima eleição, já que os setores dominantes e a imprensa faziam grande campanha contra sua imagem. Mas os militares cresceram na cena política após a deposição de Getúlio Vargas e sempre estiveram ansiosos pelo poder.

A linha militar mais radical não queria abrir mão do poder. Não se tratava apenas de depor uma ameaça comunista, queriam um projeto de longo prazo no poder. Infelizmente, essa corrente predominou. O regime militar durou longos e doloridos 21 anos, recheado de paranoia comunista. Durante o governo militar, houve alguns movimentos insurgentes que se declaravam alinhados e recebiam patrocínio da União Soviética. No entanto, eram grupos pequenos e desunidos, incapazes de promover uma revolução no país. Por exemplo, a Guerrilha do Caparaó, um dos mais emblemáticos eventos envolvendo a esquerda guerrilheira, foi contra um grupo que reunia poucas dezenas de pessoas. O Movimento Nacionalista Revolucionário recebia patrocínio do governo cubano e treinava algumas pessoas para guerrilha na fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo, mas, com o fim do financiamento cubano, o grupo entrou em crise e enfrentou árdua condição de sobrevivência. Quando o governo brasileiro agiu, havia 20 guerrilheiros em péssimas condições. Praticamente não era preciso disparar tiros. O movimento guerrilheiro foi dissolvido antes mesmo de qualquer atividade, mas o exército brasileiro aproveitou a situação para demonstrar seu poderio e criar um exemplo.

Para espanto dos leitores de esquerda, acho compreensível que o governo tenha reagido a movimentos guerrilheiros. Afinal, tratavam-se de grupos hostis ao regime que tentavam se articular para confrontos armados. Acredito que a reação seria a mesma qual fosse a orientação do Estado. O que não quer dizer que eu concorde com os métodos. Como exemplificado no caso de Caparaó, os movimentos poderiam ser reprimidos de modo mais sensato e legalmente. Identificado o paradeiro do grupo, bastaria um cerco do exército e a prisão seria feita com amparos legais. Contudo, o mais grave do regime militar foi a imposição do silêncio, a supressão da liberdade de pensamento. Muitos intelectuais, artistas, músicos e profissionais variados não eram e sequer tinham intenção de integrar guerrilhas. No entanto, foram caçados, alguns exilados e outros mortos. Ou Vladimir Herzog era um guerrilheiro?

Não há como negar a censura e a paranoia política do regime militar não mediu esforços para silenciar e se perpetuar no poder. Tudo feito à base da eliminação da oposição com o caduco argumento do combate ao comunismo. Criticas ao sistema eram intoleráveis, jamais poderia eu escrever este texto. Em lugar de "herois da pátria", caberia melhor aos militares da linha dura a alcunha de usurpadores da pátria. Graças à paranoia comunista, pessoas que defendiam a democracia, o voto direto e a liberdade de expressão foram perseguidas, mortas ou exiladas.

Anos mais tarde, a mesma imprensa que apoiou o golpe estimulou a contestação popular que levou ao fim da ditadura. O desgaste do regime culminou em sua extinção no ano de 1985. A paranoia comunista caiu junto com o Muro de Berlim. O PT, partido mais emblemático da esquerda brasileira, abandonou, aos poucos, o discurso e os símbolos soviéticos. Aos militares brasileiros sobrou o descrédito político nas décadas seguintes. No século XXI, parte da sociedade civil pediu a presença do exército nas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro para combater a violência. Na capital fluminense, as Forças Armadas participaram de operações para levar o Estado a comunidades dominadas por traficantes onde o Estado já deveria estar. Naturalmente, essa pacificação era necessária, mas há contestações sobre os usos feitos dela que não entrarei no mérito agora. Desde 2010, o Brasil mantém tropas no Haiti para tentar assegurar a paz e atua em ações humanitárias no país que foi assolado por um terremoto de grande magnitude e levou sua população historicamente empobrecida a condições de extrema miséria.

Em resumo, não cabe aos militares completa idolatria ou completa aversão na história do Brasil. Demonstrei que, em alguns momentos, os militares tiveram importante atuação política em defesa da democracia, da legalidade e de avanços sociais. No entanto, há também momentos de autoritarismo, censura e repressão extrema. Quando me referi à Ditadura Militar, comentei que era a linha dura que mantinha o poder sem limites. Logo, devemos lembrar da função das Forças Armadas e lhes dar crédito, quando cabíveis. Generalizações não funcionam na História e na Política e cada época está sujeita a diferentes conjunturas. Os militares são politicamente importantes para a história do Brasil. Mas chamar os golpistas de 1964 e a corja que reprimiu a população por duas décadas de patriotas é um descaramento muito grande.