COMENTÁRIOS SOBRE LINCOLN – O FILME E O LIVRO
(Baseado na obra de Doris Kearns Goodwin – Editora Record)
«que esta Nação com a graça de Deus venha gerar uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra».
“Há 87 anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais.
Encontramo-nos actualmente empenhados numa grande guerra civil, pondo à prova se essa Nação, ou qualquer outra Nação assim concebida e consagrada, poderá perdurar. Eis-nos num grande campo de batalha dessa guerra. Eis-nos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro repouso daqueles que, aqui, deram a sua vida para que essa Nação possa sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos.
Mas, numa visão mais ampla, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este local. Os valentes homens, vivos e mortos, que aqui combateram já o consagraram, muito além do que nós jamais poderíamos acrescentar ou diminuir com os nossos fracos poderes.
O mundo muito pouco atentará, e muito pouco recordará o que aqui dissermos, mas não poderá jamais esquecer o que eles aqui fizeram.
Cumpre-nos, antes, a nós os vivos, dedicarmo-nos hoje à obra inacabada até este ponto tão insignemente adiantada pelos que aqui combateram. Antes, cumpre-nos a nós os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação com a graça de Deus venha gerar uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra.”. ABRAHAM LINCOLN
01. O HOMEM E O ESTADISTA
Esse discurso proferido pelo 16º Presidente dos Estados Unidos da América, lançou as bases da nova democracia com a participação de todos os indivíduos em pé de igualdade, deixando claro a intenção do presidente em cumprir a premissa estabelecida na Revolução Americana de 1777.
Um governo do povo, pelo povo e para o povo somente pode ser concebido à luz da igualdade de direitos (humanos e civis), de tal modo que o fim da escravatura e a emancipação dos negros americanos constituía a pedra de toque que possibilitaria o avanço da nação rumo a um futuro onde com liberdade e igualdade todos seriam beneficiados por uma ordem nacional fundada na crença de que nascemos iguais, crescemos iguais e persistimos na igualdade, propiciando oportunidades para todos.
O anseio do presidente Lincoln – essa ideia fixa de fraternidade com seus concidadãos – mostra-se evidente no seguinte excerto:
“Diz-se que todo homem tem sua ambição particular. Seja ou não verdade, posso dizer por mim mesmo que não tenho outra tão forte quanto a de ser realmente estimado por meus próximos, tornando-me digno de sua estima. Até onde serei capaz de realizar essa ambição, ainda está por se revelar”.
Sobre ele o grande escritor russo Tolstoi disse: “Na realidade ele não foi um grande general, como Napoleão ou Washington; não foi um estadista hábil, como Gladstone ou Frederico, O Grande; mas sua supremacia se expressa totalmente em sua singular força moral e na grandeza de seu caráter”.
Foi também a partir dele que formulou-se uma política de Estado onde o Executivo mostrou a pujança da sua autonomia, independência e harmonia com os demais poderes, posto que o presidente exercia uma liderança baseada em aglutinar em torno de si todas as diferentes camadas do pensamento político vigente, não se tratando de mera aglutinação subserviente, mas sim uma somatória quase imperceptível de que todas as diferenças desaguavam em uma igualdade única.
Aliás, sobre os perigos do poder disse ele certa vez: “A ambição é uma paixão, ao mesmo tempo forte e insidiosa, e tem grande propensão a roubar de um homem sua felicidade e sua verdadeira respeitabilidade de caráter”.
Crente de suas convicções a respeito de um conflito interno, que colocou irmão contra irmão, cidadão contra cidadão, o presidente jamais esquivou-se de suas responsabilidades, chamando para si todas as vicissitudes da derrota e toda a dor da perda. Sobre ele escreveu Walt Whitman: “Já seria suficiente para consagrá-lo à memória para sempre o fato de ele ter resistido àquela hora, àquele dia, mais amargo que o fel – de fato um dia de crucificação – de não ter se deixado abater por ele, de ter feito frente àquela vicissitude sem hesitar e de ter decidido erguer a si mesmo e à União, deixando aquele momento para trás”.
Walt Whitman escreveu, em 1888: “Mais de uma vez, já imaginei o tempo em que o século atual tenha se encerrado eu novo século tenha se iniciado, em que os homens e os feitos dessa contenda tenham de algum modo se tornado vagos e míticos. Um velho soldado cercado de jovens com perguntas ávidas. Como!? O senhor viu Abraham Lincoln – e o ouviu falar – e tocou sua mão? Em toda a tela apinhada do século XIX, Abraham Lincoln parece-me ser o vulto mais importante até agora”.
Antes de ser apenas um político local, Lincoln foi um estadista na máxima expressão da palavra, preocupando-se com o hoje e com o amanhã, deixando de lado eventuais desconfianças ou mesmo inseguranças de ordem pessoal, o 16º presidente norte-americano congregou à sua volta todas as posições partidárias e ideológicas, arregimentando seus antigos concorrentes e tornando-os seus melhores conselheiros. Que outro homem na história poderia ser capaz de buscar união na divergência, esforço conjunto na competição, e, principalmente, comprometimento social em uma sociedade segregada.
Em sua cruzada pelo fim do escravagismo, este presidente debruçou-se sobre o verdadeiro problema social que teria de ser enfrentado no futuro da nação americana: ao conceder liberdade aos negros escravizados, o passo seguinte, seria, necessariamente, a emancipação com direito ao voto, com a plena liberdade política e social de votar e de candidatar-se. Ele bem sabia que este enfrentamento estaria nas esteira das consequências decorrentes da promulgação da 13ª Emenda à Constituição, e, mesmo assim, ele não titubeou, não recuou e jamais temeu eventuais efeitos adversos que isso poderia ocasionar em sua carreira como político.
Todavia, ao nos determos em algumas nuances de sua carreira política, perceberemos o quanto este homem soube valorizar a confiança que depositava em seus colaboradores, ao mesmo tempo em que chamava para si a responsabilidade de eventuais consequências indesejáveis de atos por eles praticados. Neste contexto é dele a máxima “Frequentemente é necessário mais coragem para ousar fazer certo do que temer fazer errado”; esta postura deixa claro que o Presidente Lincoln jamais se esquivaria do encargo ou mesmo do ônus de suas decisões, fossem elas difíceis ou discutíveis.
Na mesma esteira, observamos inserido no estadista o homem ciente de que cada atitude que viesse ele a tomar acarretaria efeitos sobre os quais poderia ele não ter nenhum controle; e assim foi que ele declarou que “ninguém é suficientemente competente para governar outra pessoa sem o seu consentimento". Não se pode negar que a visão de um político considerada à luz da história é seu maior juiz, exigindo dele uma conduta irretorquível que, mesmo sendo objeto de calorosas discussões futuras, jamais deixariam de ser lembradas pelas gerações que lhe sucedessem. E não se pode negar ou duvidar que apenas um homem com visão pública, ou melhor, com visão do interesse público acima do privado, poderia adotar um comportamento que tivesse por preceito fundamental a salvaguarda dos interesses da república.
02. O HOMEM E O POLÍTICO.
Um olhar pouco acurado sobre a política nos dias atuais denunciaria que a postura do 16º presidente norte-americano não foi, em momento algum, inflexível ou reacionária, pois ela foi fruto da vivência de um homem inserido em uma realidade que ele conhecia tão bem quanto os demais, e que exigia de qualquer político um comprometimento com a justiça social e com a eliminação de quaisquer barreiras de ordem social, razão pela qual ele afirmou que “quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder". E ele soube como suportar adversidades de toda a ordem e, mesmo naquelas de ordem pessoal, ele buscou um equilíbrio que não se pode conceber nos dias atuais.
Finalmente, há de se ressaltar que o estadista tinha dentro de si o germe do sentimento de nação que poucos são capazes de ter e muito mais de exercer em sua plenitude. O exemplo mais contundente está na própria guerra de secessão, aquele embate cruel e sanguinário que colocou irmão contra irmão, cidadão contra cidadão dentro do mesmo território, pressionando a república e sua própria concepção como elemento fundamental de governo. Não haveria, pois, como ludibriar, como enganar, ou suprimir a realidade dura e mortal que se abalava sobre todos, uma guerra que, segundo narram os anais da história, matou muito mais seres humanos que qualquer outra que viesse depois.
Ele bem sabia que não há como recuar, como evitar, ou como ocultar a verdade de todos os cidadãos, pois, quem assim o faz não pode ser chamado de estadista, de político ou ainda de homem público. A dor de ver milhares de corpos de seus “filhos” inertes ao chão consumido pela perda – não derrota – de vidas em defesa de um ideal forjaram o homem que conduziu a nação americana para o que ela é hoje, mesmo quando consideramos erros “grosseiros” como a denúncia da suposta existência de armas de destruição em massa no Iraque, ou o envio de tropas para todas as fronteiras de batalha, agindo como um suposto legitimado pela segurança mundial.
O presidente Lincoln estava tão ciente desta “carga” que lhe pesava sobre os ombros que compreendemos, hoje, a razão da máxima: “Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não vos será possível enganar sempre toda a gente"; o massacre de Gettysburg, as derrotas no campo de batalha e a luta incansável pela aprovação da 13ª Emenda à Constituição deixaram marcas profundas que não apenas mudariam o curso da história como também provocariam rupturas no tecidos social que jamais seriam cicatrizadas.
Apenas um homem, apenas uma ideia e um ideal poderiam por fim não à submissão do negro pelo branco, mas sim a sua emancipação, tornando-o um cidadão na totalidade que o termo enseja conceber. A semente plantada pela 13ª Emenda Constitucional demoraria muito a germinar e dar frutos, mas o importante é que ela foi plantada e que hoje podemos contemplar seus frutos e apreciar a beleza que é a multiplicidade não da dessegregação, pois isto foi apenas um ato de cumprimento, mas sim a singeleza da diversidade que se encontra não união, na aproximação de indivíduo com indivíduo, ombro a ombro, colocando-se ao lado do seu irmão, ao lado de seu compatriota, ao lado de seu igual!
Episódio marcante na história da nação norte-americana, a Proclamação da Emancipação estabelecia que em 1º de janeiro de 1863 todos os escravos existentes em território dos Estados rebeldes seriam declarados livres rejeitando, de uma só vez, toda a legislação existente sobre a própria escravidão e o direito de propriedade, trazia dentro de si o germe do conceito de emancipação na medida em que, libertos, os escravos tornar-se-iam cidadãos com direito a votarem e serem eleitos num futuro não muito distante, ao mesmo tempo em que denunciava, ainda que de forma implícita, um clamor da União nos últimos estertores que prenunciam a derrota.
Mais uma vez, o Presidente estava colocando-se à frente de seu tempo, demonstrando de forma inequívoca que seu ideal estava acima dele próprio, deixando de lado a sua candidatura à reeleição, e revelando sua concepção de que “com o sentimento do povo, nada pode falhar; sem ele, nada pode ter êxito”. E mesmo sem o pleno aval de seus correligionários e assessores, ele manteve firme sua decisão de caminhar, lenta e gradualmente, em direção ao fim da escravatura com a mesma firmeza que demonstrava ao crer que a guerra civil que já havia dizimado centenas de milhares de combatentes, teria seu ponto final em contraponto à crença da aristocracia sulista na manutenção de seu status detentor de capital gerado pela mão de obra dispendida por milhares de negros escravizados e sem futuro.
E quando o Presidente, em 14 de agosto de 1862, reuniu-se com uma delegação de escravos libertos, alegando perante esses homens que as diferenças entre as etnias estava centrada na submissão de uma pela outra, tal qual uma muralha intransponível que jamais permitiria que houvesse igualdade entre ambas, ensejou ele uma reparação de ordem pecuniária que lhes permitiria reconstruir suas vidas nas colônias na América Central, recebendo como resposta a declaração impressa em “O Libertador”, na qual dizia-se que “pertencem a este país da mesma forma que seus opressores. Foi aqui que nasceram; é aqui, para todos os fins de justiça e humanidade, que eles tem o direito de viver; e será aqui que deverão morrer no devido tempo” - mensagem essa que, ao longo do tempo, sedimentou-se na mente do presidente que soube superar a falta de empatia momentânea, conduzindo-o em direção à conscientização de que aqueles homens, mulheres e crianças já faziam parte da nação e que a única raiz de seus males estava centrada na escravidão.
Assim é que um homem como esse, dotado deste discernimento aliado à humildade de reconhecer seus próprios erros e limitações, não pode ser confundido com um político qualquer, cujas aspirações mais elevadas limitam-se apenas ao seu município, estado ou partido, possuindo vínculos de ordem política que o impedem de alçar voo na direção do sentimento popular que ali o colocou através de seu voto. Este homem tem dentro de si os sonhos do visionário e os anseios do humanista, empurrando seus concidadãos rumo a um destino maior e mais grato e não apenas puxando com a teimosia de quem concebe que sua ideias sempre serão melhores que as dos outros.
03. O POLÍTICO E O NEGOCIADOR.
No trajeto rumo à aprovação da 13ª Emenda Constitucional, o Presidente Lincoln soube como poucos os valor da negociação, da troca de favores apenas para o atingimento de um ideal, ressaltando-se que não o fez a esmo, indicando apenas pessoas que sabia ele muito bem, seriam capazes de frutificar um comprometimento na esfera política que não se dilataria sob os efeitos da primeira onda de furor partidário que viesse a surgir. O que ele esperava, de verdade, era o mesmo comprometimento que conseguira com seus Secretários de Estado – antigos concorrentes – que em muito contribuíram para que seu governo detivesse em seu interior o amálgama de todos os anseios e opiniões confluentes e divergentes nascidas no seio da sociedade, agindo de forma retributiva junto ao Legislativo.
Não se tratavam de meros conluios de interesses escusos e pouco iluminados. Não se referiam ao doce sabor de distribuição de poder ao longo da cadeia administrativa do Executivo. Nem tampouco referia-se ao ganho privado – e algumas vezes exorbitante – nascido da espoliação do interesse público que deveria ser protegido a qualquer custo, sob pena de colocar a República de joelhos perante seus próprios cidadãos.
O Presidente negociador soube muito bem o que tinha em suas mãos e procurou fazer o melhor uso possível desse recurso sem abusar de eventuais resultados degradantes, criticáveis ou ainda ilícitos, enfatizando sempre que possível a finalidade do ato: permitir que as negociações viabilizassem algo maior e melhor; algo que deveria construir o futuro, pavimentando a estrada social e política com vistas à integração social, étnica e cultural de um povo nascido de uma nova e imensa mesclagem de indivíduos que, mesmo diferentes entre si, estariam em pé de igualdade para escolherem os novos caminhos de seu destino.
04. O EXEMPLO A SER SEGUIDO.
De qualquer aspecto que observemos a trajetória do Presidente Lincoln vamos sempre perceber uma predestinação com o futuro da humanidade, até mesmo porque o caminho por ele desbravado a custa de muito sangue, suor e lágrimas, seria o caminho pelo qual seguiriam pessoas como Gandhi, Martin Luther King Jr, John Fitzgerald Kennedy e tantos outros que, acreditando na tríade liberdade, igualdade e fraternidade, perseguiriam a custa de suas próprias vidas um mundo melhor, um mundo com oportunidades iguais para todos.
Não houveram vicissitudes, perdas, derrotas, lágrimas ou sangue que o demovessem de seu ideal, mesmo que isso viesse a custar caro demais para qualquer outro homem. Apenas um homem que, diante de uma guerra insana, onde irmão se colocava contra irmão, dentro do mesmo território, semeando discórdia, egoísmo e soberba, tornou-se capaz de enfrentar com pulso forte e com determinação férrea, conclamando todos a se unirem em torno de um único objetivo – a tríade liberdade, igualdade e fraternidade – para que seus descendentes pudessem olhar para trás com a certeza de que fizeram aquilo que consideravam correto.
Apenas um homem, um estadista, um político hábil e um Republicano convicto – reunidos na mesma pessoa – poderia suportar a enorme carga que lhe pesaria por sobre os ombros e que, ao final, lhe custaria a própria vida que foi oferecida em sacrifício público fazendo-o sair da existência para adentrar no panteão histórico daquelas celebridades que mudaram a face do mundo e da humanidade, fazendo-a relembrar eternamente que um governo não se faz apenas de palavras, pois um governo se faz com ação, a mesma ação que conduz ao futuro e que escreve a história da humanidade, dia após dia, com a convicção do que é certo e do que é bom.
Ao nosso ver Lincoln não foi apenas um exemplo a ser seguido, um homem à frente de sua época, um estadista compromissado com a república; ele foi, é e sempre será o arquétipo do homem ciente de que somente haverá igualdade quando houver liberdade e que ambas não sobrevivem sem a dose certa de fraternidade, o sentimento que sedimenta respeito, afeto e compreensão de um com o outro, independentemente de que seja o outro!
“O caráter é como uma árvore e a reputação como sua sombra. A sombra é o que nós pensamos dela; a árvore é a coisa real”.