Atrás do Espelho
Assim como a gente se olha no espelho e não vê que está envelhecendo, as mudanças no mundo vão ocorrendo e é preciso que tenhamos acesso a olhares mais antenados ou mais penetrantes para que consigamos enxergar alguma coisa. Ou detectarmos o que muitas vezes não permitem que conheçamos ou que não é comumente veiculado pela mídia que nos é oferecida.
Felizmente nem tudo está perdido. Existem importantes vozes hoje que podem nos auxiliar na compreensão dos caminhos que o mundo vai tomando. Uma delas é, sem dúvida, a de Noam Chomsky. Lingüista, filósofo e ativista político estadunidense de fama internacional, esse professor do MIT (Massachusetts Institute of Techonology) é autor de importantes pronunciamentos no campo social e críticas contundentes a modelos de domínio que favoreçam as classes mais altas.
Mas temos também, talvez na mesma linha de conduta no campo social, a presença marcante do britânico Seumas Milne, jornalista, escritor e editor associado do importante jornal inglês "The Guardian".
Para Milne, por exemplo, o modelo de capitalismo voraz, capaz de “inflar desmedidamente a desigualdade social e a degradação do meio ambiente”, está desacreditado. Entendo que, se um raciocínio dessa natureza pode ser aplicado à Europa, com muito mais chances podemos entendê-lo quando relacionado à América do Sul. Ou ao Brasil. É só verificarmos o que acontece em nosso país, em termos da falta de oportunidades para todos, apesar de o poder de compra (ou de endividamento) ter aumentado, segundo o que alardeia o governo. E o que dizem os ambientalistas a respeito da transposição do Rio São Francisco e da construção da Usina de Belo Monte. Cujos projetos, ao que parece, são ao menos discutíveis.
Milne alerta também para a ascensão da China, cujo “crescimento tirou milhões de homens e mulheres da miséria”, para o fracasso do pensamento conservador. O que teve repercussão na América Latina, não só quanto a relações comercias com o mercado chinês, como também quanto a “mudanças progressivas que levaram governos socialistas e social-democratas a atacar a injustiça econômica e social”.
Poucos são os brasileiros que tiveram a informação de que a “guerra ao terror”, de Bush, passou a ter o nome de “operações contingenciadas no estrangeiro”, tal o nível de problemas e situações embaraçosas causadas em âmbito internacional pelo governo americano. Não temos o hábito de ler o "The Guardian".
Quando um jornalista britânico nos afirma que “desde antes de 2008 o modelo de ‘livre-mercado’ já vinha sendo alvo de ataque feroz, com o neoliberalismo transferindo o poder para bancos e grandes empresas”, e assim favorecendo “o aumento da miséria e da injustiça social”, temos que nos lembrar do Brasil. O Governo Lula por acaso não optou por uma política de aproximação com os bancos? O seu Presidente do Banco Central (Henrique Meirelles) não foi Presidente do Bank Boston Brasil, apesar de o Bank of Boston ter sido um banco de porte médio nos Estados Unidos? E não seguiu o Governo do PT, em grande parte, a política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, período em que ocorreram inúmeras privatizações? Será que não é lícito, ao menos, confrontarmos o que diz um colunista de um grande jornal europeu, de visão socialista, com a atuação de um governo que acreditávamos de tendência esquerdista?
E quando, evidentemente em relação à União Européia, Seumas Milne adverte que, já em 2008, “com o peso da crise descarregado sobre os ombros das maiorias”, ... “a rejeição da ganância, da arrogância e do poder das grandes corporações já era o senso comum da época”, será que não vemos nenhum ponto em comum com o caso brasileiro?
Pela própria circunstância da globalização, é muito difícil que os problemas vivenciados num país de uma forma ou de outra não encontrem correspondência em outros. “A crise econômica e a crise ecológica”, “um novo tipo de ordem global”, “genuína mudança social e econômica”, são expressões que se relacionam diretamente à vida nas diferentes nações do planeta. Sejam elas desenvolvidas ou não.
Podemos viver à margem disso, como muitos o fazem, e nada há de errado. Tal como, diante do espelho, não precisamos ficar procurando por rugas que juramos que não existem. Só que, assim como nada há de errado também em nos conhecermos um pouco, por dentro e por fora, importa estarmos acordados para as relações de vida que nos cercam. Sobretudo para aquelas que nos são subtraídas ou usurpadas. Como se fizessem parte de um espelho que não nos mostrasse quem de fato a gente é.
Sem contar com o fato de que o que somos interfere com aqueles que nos cercam. Estamos sempre modificando o próximo. Como somos por ele modificados. A política é uma realidade tão presente e inevitável que dela não se exclui nem mesmo o outro “eu” que temos dentro de nós.
Rio, 23/10/2012