CONSTRUINDO CIDADANIA
Os teóricos da cidadania criam um mito ancestral para mostrar a necessidade de uma organização social, que constitua o homem como cidadão. Etimologicamente “cidadão” é o habitante da cidade, ou, segundo os antigos gregos, o homem livre que participa da vida e da organização da “cidade-estado”, a polis. Os cidadãos do Império Romano se distinguiam dos bárbaros, afirmando que seguiam leis, enquanto os bárbaros eram arbitrários.
Diante das múltiplas situações históricas em que encontramos homens com cidadania e homens sem cidadania, no período do pensamento moderno, os filósofos Hobbes e Rousseau criaram a teoria do “contrato social”, para explicar a passagem da humanidade dum período sem cidadania para o estado cidadão. Hobbes e Rousseau criam o mito do “estado de natureza” da humanidade. Um estado em que cada um seguia apenas a dinâmica de sua natureza. Ninguém precisava de chefe, de governo, de propriedade particular. Tudo estava à disposição de todos. A terra era de todos. Os homens eram livres e se guiavam pelos impulsos de sua natureza.
No entanto, quando a humanidade aumentou, e os encontros entre indivíduos e grupos se intensificaram, nasceram conflitos entre os direitos naturais de uns para com os outros. E, para a convivência e a sobrevivência de todos, a complexidade da situação necessitava de acordos, de contratos, de pactos. E, neste momento, teria ocorrido a passagem do estado de natureza para o estado do contrato social. Da forma como eram celebrados os contratos sociais, os pactos, surgiram as formas de governo, as leis, as constituições, o direito. Por isto, quando os romanos, ou qualquer um diz que tem leis, isto significa que ele se considera parte de um “Estado de Direito”; que ele é cidadão, que ele confia num poder que garanta os seus direitos e deveres de cidadania.
Passando do genérico para o concreto, em nossa sociedade brasileira complexa do século XXI, todos nós nos consideramos parte de um Estado de Direito, convencionado e pactuado, com constituição e regulamentação específica para todas as áreas de nossa convivência social. Isto significa que participamos da constituição de um Governo, autorizado e comprometido em fazer cumprir o pacto social do qual fazemos parte.
Em nosso pacto se garante ao cidadão: habitação, alimentação, saúde, segurança, educação, trabalho, justiça, liberdade, igualdade e solidariedade para todas as pessoas deste imenso Brasil. Em contrapartida, o pacto exige do cidadão responsabilidade, esforço e cuidado para fortificar, colaborar e fazer respeitar os direitos e os deveres inerentes ao pacto, e expressos na constituição do país.
Quando assim entendemos uma sociedade civilizadamente pactuada, e olhamos ao nosso redor, verificamos que ainda falta muito para sairmos definitivamente do “estado de natureza”, da barbárie, para nos considerarmos parte de um “Estado de Direito” pragmaticamente efetivo. E quem, em primeiro lugar, deveria se escandalizar com a distância entre o ideal de um “Estado de Direito”, civilizado, e a realidade em que nos encontramos?
Em primeiro lugar, sem dúvida, os governantes, demonstrando que são os mais zelosos em observar o pacto, cumprindo as leis e fazendo observá-las; depois, o exemplo deveria vir das instituições educacionais e dos profissionais da justiça, que, propriamente, não necessitariam aqui ser mencionados, pois não seriam profissionais da justiça se não tivessem passado por faculdades ou universidades, onde deveriam ter sido instruídos adequadamente como zelar pelo pacto social.
Mas, o que os noticiários nos informam diariamente? Processos contra governantes; políticos apenas interessados em interesses próprios, aceitando e pagando propinas; falcatruas em instituições de ensino; juristas buscando como não cumprir a lei, em vez de zelar para que a Lei fosse cumprida; exploração no ambiente do trabalho.
Tudo isto nos poderia mergulhar num terrível pessimismo. Penso, no entanto, que estamos diante dum imenso desafio. Todo cidadão consciente e crítico encontra-se diante de uma sociedade que precisa ser melhorada e, em grande parte, construída e pactuada de forma mais consistente. Conformismo, desânimo e pessimismo não combinam com esta imensa tarefa para a qual todo cidadão é chamado. Somente se nos empenharmos em melhorar nossa cidadania podemos nos considerar brasileiros civilizados do século XXI.
Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife- PE