O ESTADO NA VISÃO DE PLATÃO
Entrevista para o Instituto Humanitas (IHU-UNISINOS) do prof. Inácio Strieder: 31.10.2006.
a/c. Jornalista Márcia Rosane Junges
1. IHU - Online: Em quais aspectos as ideias de Platão sobre o Estado seriam válidas para os dias de hoje?
Strieder - A maioria dos estudiosos de Platão, em nosso meio, apenas toma em consideração a sua ideia de Estado, que se encontra na República. Poucos se lembram da última obra de Platão: As Leis. Nas Leis o Estado Platônico já não será mais governado pelos filósofos-reis ou pelos reis-filósofos. Cidadãos iluminados, que sabem se orientar pelas ideias perfeitas e imutáveis do mundo ideal. Em Magnésia, denominação do Estado para o qual Platão propõe as regras nas Leis, os governantes serão selecionados entre os cidadãos mais experientes e sábios, em formação continuada, sujeitos a uma constituição escrita, assessorados por diversos Conselhos. O Estado de Magnésia já não é mais o Estado Ideal, perfeito, utópico da República. Mas é um Estado real, situado na região de Creta, com geografia acidentada, interiorana, uma terra apropriada para uma agricultura selecionada; a população tem características étnicas e psicológicas determinadas, com necessidades e desejos específicos. Platão não renuncia à ideia do melhor Estado para esta região e para esta população. Mas já não imagina um Estado ideal de primeira ordem, e sim um Estado possível, que se satisfaz em ser idealmente o segundo melhor Estado: um Estado realmente possível. E que lições permanecem válidas para nós nesta proposta feita por Platão nas Leis? Claro, aqui não é possível relacionar tudo que considero válido, ( e também inválido), na proposta de Platão. Por isto, farei menção apenas a alguns dados que julgo significativos. Em Magnésia não existem caciques, coronéis e/ou aventureiros políticos. Os políticos são selecionados pelo critério do mérito: cidadãos que se destacaram na busca de uma educação (paidéia) aprimorada, longa e continuada, com experiências profissionais, e envolvimento na problemática social. Somente assim estarão aptos a administrarem as relações comunitárias com sabedoria, em busca da justiça que visa o bem comum e a felicidade (eudaimonia) de todos. Sendo assim, os políticos cuidarão, em primeiro lugar, de atender às necessidades básicas de todo cidadão: comida, habitação, vestuário. Para resolver o problema da comida, Platão propõe restaurantes comunitários. Para a habitação, com certeza, no Estado Platônico não existiriam favelas e mocambos. O vestuário seria adequado às necessidades da região. Da busca de satisfação destas necessidades nasce a exigência da profissionalização dos cidadãos: uns serão pedreiros, outros ferreiros, sapateiros, agricultores. O Estado terá que se preocupar com o número de seus habitantes e planejar a educação dos cidadãos, para que a distribuição das profissões seja harmônica e equitativa. O Estado platônico tem função pedagógica e será o guardião da educação do cidadão. Platão também se preocupa com a posse da terra e a sua capacidade produtiva. A terra será propriedade de quem a torna produtiva, não terá valor especulativo ou puramente venal. O Estado existe em função do cidadão, e não o cidadão em função do Estado. Neste sentido, a partir das Leis, se torna injusta a acusação de Popper, em A sociedade aberta e seus inimigos, colocando Platão como o pai do totalitarismo ocidental. Outro aspecto importantíssimo para Magnésia é a sua estrutura judicial: os crimes não permanecerão impunes. Claro, não estou aqui endossando os castigos propostos por Platão, como pena de morte, tortura, exílio, etc. Mas, para Platão, lei injusta não é lei. Mas toda lei (justa) deverá ser cumprida. E os legisladores só poderão criar novas leis explicando suas vantagens aos cidadãos. Os cidadãos, necessariamente, deverão ser esclarecidos em relação às leis. Num sentido geral, o cidadão somente se conservará no bem se tiver nome, endereço, relação comunitária (se for conhecido no ambiente onde mora!) e tiver algo por que zelar como seu. Além disto, se supõe, que tenha recebido educação no nível de sua profissão, e que suas necessidades básicas estejam atendidas.
2. IHU - Online: Em linhas gerais, qual era a definição do Estado platônico?
Strieder - Penso que uma definição do Estado platônico deve-se deduzir da explicação que Platão nos dá a respeito da origem do Estado. Na República (cf. 369 ss.) Platão explica que uma cidade (um Estado!) tem sua origem no fato de nenhum de nós ser autosuficiente, mas ter necessidade de muitas coisas. E termos necessidade da ajuda dos outros para satisfazermos estas necessidades. Por isto os homens se reúnem como companheiros de ajuda mútua, para conseguirem alimentos, habitação, vestuário, segurança, saúde etc. Desta forma o Estado platônico se torna um facilitador da convivência dos associados em busca do bem comum e felicidade de todos os conveniados em busca da satisfação de suas necessidades materiais e espirituais. O Estado, portanto, é um tutor e um guardião da convivência harmoniosa e justa dos cidadãos entre si.
3. IHU - Online: Por que o senhor afirma que “se a política de hoje assumisse alguns dos indicativos da sabedoria platônica para a organização da sociedade, com certeza, graves problemas sociais de nosso tempo poderiam ser solucionados”?
Strieder - O Estado platônico possui o objetivo de oferecer aos cidadãos as condições para que sejam felizes. A felicidade platônica não é simplesmente um momento de bem estar ou de prazer, mas uma situação em que a pessoa se sente bem consigo e com os outros. Portanto, o bem estar é compartilhado, cada qual contribuindo para o bem comum, com a objetivação de suas habilidades. Nas Leis não se propõe um socialismo totalitário e, muito menos, o capitalismo egoísta. Olha-se para o que é justo e bom. O sentido do Estado é oferecer ao cidadão as condições e a educação para que possa trabalhar e encontre trabalho. O Estado forma os cidadãos para as necessidades da sociedade, não permite o simples laissez-faire. Na sociedade platônica há planejamento. Platão fala de 5040 proprietários em cada cidade. Este número permite mais subdivisões dos cidadãos em grupos menores, pois é o único número divisível por todos os números de 2 a 9. Claro, os números de Platão não podem ser referencial demográfico para nós, pois hoje é necessário somar a população por milhões. Mas Platão nos ensina que a população de um Estado não pode ser um aglomerado desordenado de pessoas. É preciso distribuir tarefas, subdividir administrativamente a população para que todos recebam os benefícios a que têm direito. Portanto, deve haver uma política demográfica. Em Magnésia os pais são responsáveis pelos filhos, para lhes transmitirem as virtudes da cidadania. Há uma preocupação com as famílias, com o número de seus filhos e a responsabilidade dos pais para com sua prole. Aqui um link com a bolsa-família. Encontrei no Recife um pai de 7 filhos com quatro mulheres diferentes. Todas têm bolsa-família. Mas que famílias são estas? No interior de Pernambuco uma mulher com 17 filhos (11 vivos), todos subnutridos, quando aconselhada pela promotora de no próximo parto ligar as trompas, respondeu que não faria isto, pois queria ter 27 filhos como sua mãe. Que presença governamental temos neste caso, e que consciência de cidadania destas pessoas. Fala-se em bolsa-família, mas sem nenhuma política familiar.
Quando Platão fala em distribuição das terras entre os cidadãos, ele nos ensina a necessidade de uma justiça no campo, de uma reforma agrária, de terras de produção, e não simplesmente de posse.
Platão nos mostra a necessidade de instituições (conselhos) que funcionem. Um dos graves problemas de nossa política é a fragilidade de nossas instituições.
Não pode haver uma superabundância de Leis. Dizem os entendidos que no Brasil temos mais de 100.000 leis. Quem é o cidadão que pode dominar tantas leis? Nem os advogados e os juízes. Platão ensina que os cidadãos devem conhecer as leis de seu Estado e as suas vantagens. Uma vez preenchidas estas condições, os que transgridem as leis deverão ser punidos.
Para resolver o problema da alimentação, Platão exige restaurantes populares. A habitação deve dar segurança aos cidadãos. Com certeza não se poderia admitir a desordem das favelas, o inchamento das cidades.
Assim poderíamos continuar a enumerar características benéficas do Estado platônico. Isto não significa que, ao lado disto, também pudéssemos endossar os aspectos negativos deste Estado, como a continuidade da escravidão, a discriminação dos estrangeiros, a pena de morte, o aborto e o infanticídio eugênico, etc.
4. IHU - Online: Qual deve ser o papel do intelectual no processo político? E do filósofo?
Strieder - Talvez, inicialmente, devêssemos corrigir um pouco o conceito de intelectual e de filósofo. Num sentido, parcialmente colhido na filosofia platônica, o intelectual seria aquele que não suja as mãos com a matéria. Que não realiza trabalhos “vis”, mas especula, pensa, raciocina etc. Nas Leis Platão corrige um pouco este conceito, embora ainda admita trabalhos que um cidadão não deve fazer. Mas, também os futuros políticos terão que realizar trabalhos pesados, para adquirirem experiência. Hoje, no meu entender, o “intelectual” incapaz de cuidar de sua casa em trabalhos práticos, não é nenhum exemplo de cidadão. Bem, mas isto é outra discussão. Então, qual a função do intelectual e do filósofo no processo político? Penso que não dá para separar o filósofo do intelectual. Tanto um como outro deve ser “massa crítica” na sociedade. Especificamente, o filósofo deveria estar presente nos sindicatos, nas ONGs, nos partidos políticos, nos grupos de reflexão para estimular e iluminar a análise das questões sociais, culturais e políticas de toda ordem. Fico muito satisfeito com o fato de a filosofia novamente adquirir um status melhor no mundo cultural brasileiro. De 23-27 de outubro p.p. reuniu-se em Salvador da Bahia a Associação Nacional de pós-graduação em Filosofia. Foram apresentadas mais de 1000 comunicações de pesquisa. O que é algo admirável. Ao lado de alguma baboseira, houve também muita coisa boa. Contudo falta aos filósofos brasileiros, de certa forma, melhor compreensão da sabedoria de Epicuro, que dizia: “Se a filosofia não for capaz de transformar a sociedade, melhor que ela não exista”. De acordo com esta afirmação, os filósofos, e os intelectuais em geral, estiveram praticamente ausentes na última campanha política. Ausentes nos debates, e ausentes como candidatos. Por isto, espero que com o aumento da atividade filosófica no Brasil surjam mais filósofos que se inspirem na sabedoria de Platão, para quem o filósofo tem função social, e na sabedoria de Epicuro. De nada serve o filósofo somente tentar descobrir o que algum outro filósofo, fora de nossa realidade, tentou pensar. É preciso pensar em função de nossa realidade. Assim como Platão pensou em função de Magnésia, região de Creta.
5. IHU - Online: O que é ser de esquerda hoje? Ainda é possível entendermos a política sob as denominações de esquerda e direita?
Strieder - Segundo a ética platônico-aristotélica, a virtude, ou a excelência, está no meio. Os extremos estão viciados. Por isto, tanto a esquerda como a direita estão viciados. Por isto, se não quisermos compactuar com o vicioso, é melhor não usar estes conceitos em qualificações. Geralmente, quem os usa se situa em um destes extremos. Qualifico a alguém outro de direita se me situo na esquerda, e vice-versa. O que, em si, é maniqueísmo. E o maniqueísmo, pelo qual a verdade toda está apenas de um lado, com certeza é um paradigma impróprio para se qualificar politicamente as pessoas. Por isto, hoje, qualificar de “esquerda” e de “direita” não tem valor científico, mas ideológico, no sentido fraco deste conceito. É verdade, nesta última campanha política , em diversas situações, tentou-se qualificar candidatos como sendo de esquerda ou de direita. Mas isto teve pouca força, pois, muitas vezes, os “esquerdistas” não sabem mais o que é ser de esquerda, nem os “direitistas” o que significa situar-se à direita. Por isto, no meu entender, seria melhor abandonar, na política, as qualificações de esquerda e de direita, e perguntar por aqueles que apresentam os melhores projetos para se chegar a uma sociedade mais humana.
6. IHU - Online: Precisamos repensar a democracia representativa no Brasil? A estrutura partidária ainda tem espaço na sociedade hiperindividualista em que vivemos?
Strieder -Certamente deverá ocorrer, nos próximos anos, uma reestruturação partidária no Brasil, bem como a forma de representação dos cidadãos nas câmaras, nas assembleias e no Congresso. Claro, não é mais possível uma democracia direta, como na polis grega, mas a participação popular nas decisões políticas deve ser fortificada. Para pensar como articular esta participação deveriam ser chamados os intelectuais e os filósofos, além dos políticos experientes e as entidades civis organizadas. Isto é uma tarefa a médio prazo.
A atual estrutura partidária é outro complicador na realidade política brasileira atual. Na última campanha presidencial, e também em muitos casos na estadual, pouco valeram os partidos. Todo o peso foi colocado nas pessoas. Deu a impressão que estávamos na época da República de Platão, e não na época das Leis. A única pergunta era, quem é o candidato( o filósofo-rei!) mais iluminado, Alckmim ou Lula? Ninguém perguntava quem seriam os seus ministros, os seus conselheiros, etc. Realmente, a campanha foi individualística, personalista. O que não é nada bom para a democracia.
7. IHU - OnlineÉ o momento de pensarmos em novos mecanismos políticos? Se sim, quais e como seriam eles? Com mais participação da sociedade civil?
Strieder - Para mim, a atividade política formal do Estado deve coordenar os mecanismos sociais. Ser capaz de identificar as necessidades dos cidadãos, colocar as bases para que eles possam ser criativos. É a preocupação com a infra-estrutura, com os projetos, com a fiscalização das leis, o recolhimento dos impostos e a fiscalização de sua aplicação na construção de uma sociedade que cresça em sua esperança de uma vida harmoniosa e digna. Nenhum cidadão pode ser frustrado em sua esperança de dias bons, de participação na organização da sociedade em que vive. O cidadão deve ter o sentimento de ser útil na comunidade em que vive. Assistencialismo não resolve. O que resolve é o incentivo, o apoio pra que as comunidades possam caminhar. Para isto é preciso fortificar as organizações da sociedade, com o apoio do governo. O poder, ainda muito centralizado, deverá ser diluído entre os cidadãos. Nada adianta, por exemplo, construir belas escolas nas favelas, sem que a comunidade local seja chamada a participar, pois em breve tais escolas serão ruínas. Em primeiro lugar deveria aparecer um amplo projeto de desfavelização do Brasil. Grande mal são os inchamentos urbanos, com pessoas desenraizadas, desestruturadas social e psicologicamente, sem integração comunitária. A saída é uma sociedade comunitarista, com o apoio da política formal de educação para o trabalho e a vida.
8. IHU -Online: Quais são as maiores dificuldades para fazer filosofia no Brasil? Podemos falar de uma filosofia brasileira? Como seria ela?
Strieder - Fazer filosofia é pensar e analisar criteriosamente a vida humana, real e concreta. Por isto, toda a filosofia tem base antropológica. Simplesmente se deter em considerações genéricas e universalísticas não é fazer filosofia. O ser humano é concreto e real. O homem genérico e universal não existe. As ciências verificam causas e efeitos concretos e específicos. Por isto, o objeto da filosofia no Brasil deveria ser o homem brasileiro com suas aspirações, seus problemas, suas esperanças, suas capacidades. E este homem é um ser situado. E somente quem convive com este homem, participa de sua vida é capaz de compreendê-lo e propor respostas para suas perguntas. E quem deveria fazer isto? São os sociólogos, os antropólogos, os psicólogos, os filósofos brasileiros. Mas, especificamente, o que está acontecendo? Nos mestrados e doutorados de filosofia no Brasil, praticamente, todas as dissertações e teses versam sobre filósofos europeus e americanos, que nunca estiveram no Brasil, e talvez até tenham dificuldades em situar geograficamente nosso país. Os nossos “grandes” filósofos brasileiros são apenas especialistas em Kant, Hegel, Wittgenstein, etc., etc... Recebem bolsas de pesquisa para descobrirem o que estes personagens pensaram. Penso que uma vida que apenas se preocupa em descobrir o que outros pensaram, sem ter um pensamento próprio, não vale a pena ser vivida, nem deveria receber bolsas de dinheiros públicos para fazer isto. A filosofia no Brasil deveria ter como objeto a realidade brasileira e seus pensadores. Mas isto não é bem visto , e quem o tenta fazer é discriminado no mundo filosófico. Além disto, os apoios à atividade filosófica, pelos órgãos fomentadores da pesquisa, estão concentrados, praticamente, em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para o Nordeste vêm algumas migalhas. Existe no Brasil, ainda, uma elite filosófica que não toma em consideração a realidade brasileira como um todo. A última gestão da ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia) já conseguiu mudar um pouco esta calamidade, e , espera-se, que a nova direção consiga distribuir a filosofia de forma mais equânime pelo Brasil todo, permitindo, inclusive, que cada programa e cada região possa desenvolver a filosofia de acordo com a situação do homem em cada uma destas regiões, para que cresça não só um pensamento filosófico brasileiro, mas um pensamento filosófico proveitoso para os cidadãos de todo o Brasil.
Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife/PE