OS FILÓSOFOS E A GUERRA

Introdução

Toda guerra é um crime. Nela se institui como direito o homicídio, o roubo, o incêndio, o estupro, a tortura, a espionagem, as expropriações, a invasão de domicílios e a devastação no maior grau possível. Ao se declarar uma guerra sabe-se que tudo isto acontecerá. Pois, se isto não ocorresse, a guerra não seria guerra. Portanto, quem declara uma guerra autoriza atos criminosos que repugnam à sã razão. Por isto, falar em guerra justa é uma contradição selvagem. Seria o mesmo que admitir um crime justo. Um crime santo, um crime legal. Não pode haver guerra justa, pois não existe guerra judiciosa. A guerra é a perda temporal do juízo. É uma alienação mental, uma espécie de loucura. Na guerra nada fazem os homens que não seja uma loucura, nada que não seja mau, feio, repulsivo e indigno de um homem de bem. Em tempos de guerra se incentivam a espionagem, a traição, a denúncia e a mentira. Tudo o que é odioso em tempo de paz. Por isto, os homens em guerra não merecem a amizade dos homens pacíficos. Guerra civilizada é um barbarismo equivalente ao de barbárie civilizada. Os soldados naturais de uma guerra seriam os homens mais bárbaros e selvagens. E onde os meios são bárbaros e selvagens é impossível admitir que os fins sejam civilizados. Por isto, afirmar que é impossível acabar com as guerras é confessar um pessimismo em relação ao progresso civilizatório da humanidade.

Diante da realidade histórica das guerras, e de suas crueldades inomináveis, o que os filósofos têm a dizer? Podemos ter confiança na vitória da razão humanitária, ou devemos admitir o fracasso do homem em seu ideal ético de construir uma vida “bela e boa”?

Tenho a impressão que o tema da guerra preocupa de menos os filósofos brasileiros. Talvez porque nos consideramos longe dos conflitos em outros partes da terra. Nunca vimos os estraçalhados e mutilados das guerras. Não nos confrontamos com os famintos, os empestados e os mortos em conseqüência de tantas guerras. Por isto preferimos concentrar nossas pesquisas filosóficas em questões neutras: Estéticas, lingüísticas, teóricas, longe das fotografias infernais dos campos de batalha e da concentração das populações humilhadas. Mas, mesmo longe das guerras declaradas, a filosofia no Brasil não pode deleitar-se esterilmente em análises de belos pensamentos que alimentaram os cérebros de filósofos que nada conheciam da realidade do homem em nosso mundo existencial. Já Epicuro dizia que, uma filosofia sem conseqüências melhor que não existisse. Ou, então, nos orientando pelos conselhos de Descartes, de nada vale uma filosofia buscada em sábios fora de nosso mundo existencial. Para nos orientarmos na vida, que vivemos de forma situada em um contexto concreto, é preciso conhecer o que as pessoas mais sensatas e sábias deste contexto pensaram e fizeram, ou pensam e fazem . Por isto, penso que os enfoques principais de nossa filosofia deveriam ser os problemas concretos de nossa terra, e o exame do pensamento de nossos sábios e cientistas.

Quando se trata do problema da guerra, é verdade, o Brasil, no momento, não está envolvido numa guerra declarada no sentido tradicional. Mas ninguém pode negar que a violência no Brasil se assemelha a um estado de guerra civil. Uma surda guerra civil, caótica. E esta situação mereceria ser uma das principais preocupações dos filósofos no Brasil. Os filósofos deveriam estar angustiados, buscando entender e reverter esta situação. Pela violência existente em nosso país, nos encontramos numa situação análoga a um ambiente de guerra Mas, mesmo que a nossa situação não fosse assim, não estaríamos isentos das conseqüências nefastas das guerras que se espalham pelo mundo. Sofremos conseqüências econômicas, e nos sentimos humilhados como seres humanos, vendo o terror das bombas estraçalhando as pessoas. O filósofo não pode permanecer indiferente perante o sofrimento das pessoas afetadas pelo terror nas guerras. Somos parcela da humanidade. E enquanto seres humanos se encontrarem em situações de humilhação, enquanto forem como que “desterrados da terra” (Franz Fanon), os filósofos não têm o direito de se refugiarem em “torres de marfim”.

Bem. Mas vejamos como alguns filósofos e pensadores se posicionaram, através dos tempos, frente ao problema das guerras.

O homem e suas guerras

Segundo estimativas, desde a batalha de Waterloo, em 1815, até hoje ocorreram cerca de 350 guerras de todos os tipos. Embora o século XIX tenha sido um século relativamente pacífico, ao menos no que se refere a conflitos internacionais, contudo podemos tomar a freqüência de guerras desde aquela época para uma estimativa do número de guerras, desde o início de nossa civilização ocidental, há cerca de 3.600 anos a.C. De acordo com estes parâmetros, deve ter havido cerca de 13.600 guerras desde os remotos tempos suméricos e babilônicos. Em todos estes milênios a humanidade não teria tido nem 300 anos de paz. E em todas estas guerras teriam morrido, diretamente nos conflitos, mais de um bilhão de pessoas. E outros bilhões em conseqüência destas guerras. Mas, até hoje, nada conseguiu abater as guerras. Nem os incêndios, as devastações, os homicídios, a escravização de povos inteiros; nem a civilização, nem a filosofia, nem a educação, nem as letras; nem as organizações burguesas, nem a comunicação; nem a literatura da paz e as demonstrações contrárias à guerra. Nas guerras, após a II Guerra Mundial, com certeza, já morreram tantos quantos naquele conflito internacional. Nos quase 60 anos após a II Guerra Mundial já aconteceram mais de 100 guerras, nacionais e internacionais, com milhões de mortos. Basta recordar as guerras da Etiópia e da Somália, a Guerra do Vietnã e Cambodja, a Guerra da Rodésia, envolvendo os outros países da África negra, a guerra na Etiópia, a guerra das Coréias, as guerras de Israel contra o Egito e países árabes; as guerras nos Bálcãs, a guerra entre Irã e Iraque; também Angola, Laos, Zaire, Chad estiveram envolvidos com guerras; Filipinas, Tailândia, Burna, Namíbia sofreram com guerrilhas e guerras; as guerrilhas na Colômbia e outros países sul-americanos; a guerra da Cashemira, envolvendo Índia e Paquistão. E no momento atual estamos sendo informados diariamente sobre os conflitos entre Estados Unidos e Iraque; Israel e Palestinos; guerrilha e Governo na Colômbia; conflitos tribais na África; e, perto de nós, uma espécie de guerra civil caótica nos grandes centros urbanos do Brasil, onde morrem, em média, mais pessoas do que em muitos conflitos armados formais. Verifica-se, inclusive, que, depois da II Guerra Mundial, quem mais guerras fez e faz são os norte-americanos. Praticamente não houve região do globo que não fosse ocupada, sofresse um desembarque ou bombardeamento dos Estados Unidos. Na Europa as divisões americanas continuaram por toda a parte; na Ásia jogaram bombas sobre a Coréia, sobre o Vietnã, sobre o Laos e o Cambodja; na África desembarcaram na Somália, e dispararam contra o Sudão; recentemente se instalaram no Kuwait, no Afeganistão e no Iraque. Tudo isto a serviço da paz, como alegam. Na América Latina, além de respaldarem ditaduras em muitos países, estiveram na Nicarágua, em El Salvador, na Guatemala, em Honduras, no Panamá, no Haiti e na minúscula ilha de Granada. Cuba nunca conseguiu que abandonassem Guantanamo. Sob a alegação de combate ao narcotráfego, hoje estão na Colômbia, ante as portas da Amazônia. Seus submarinos nucleares desfilam em todos os mares e nos cinco oceanos. Esta prepotente presença bélica americana, que ameaça constantemente os fracos, para impor respeito e exigir submissão, não parece a melhor forma para levar a humanidade a uma paz duradoura.

Portanto, não me parece sem interesse para nós filósofos analisar, tentar entender e propor encaminhamentos para o problema humano das guerras e da violência. Entre os analistas das guerras existem divergências quanto à identificação de um conflito armado como guerra. Alguns dizem que um conflito pode ser caracterizado como guerra, quando nele morrem cerca de 500 pessoas, outros elevam este número a um milhar, ou a alguns milhares de mortos. Isto, em si, é bastante secundário, pois há uma série de variantes que nos indicam se alguma situação de confronto deve ser caracterizada como guerra. Não podemos reduzir tais situações a uma variante só. O que nos interessa, nesta comunicação, é verificar como os filósofos, nas diversas épocas, se posicionaram em relação às guerras. Vejamos.

O que explica as guerras?

Já os registros históricos mais antigos falam de guerras. Sumérios, egípcios, babilônios, assírios, fenícios e demais povos bíblicos, de tempos em tempos, estão envolvidos em cruéis conflitos, em que um povo tenta exterminar os seus inimigos. Reis esfolam ou empalam os seus inimigos capturados, os escravizam ou exterminam. Tais guerras não são consideradas como sendo travadas apenas entre os homens, mas os deuses destes povos estariam envolvidos, pois, através destas guerras, quereriam demonstrar quem é o mais poderoso. Ou então, através das guerras os deuses estariam castigando os homens por causa de sua perversão. As guerras são o flagelo de Deus.( Idéia que até hoje serve de paradigma para alguns religiosos justificarem porque Deus permite a tragédia de tantas guerras).

Na mitologia grega os deuses conquistam o seu poder pela guerra; os gigantes (titãs) estão em guerra com os deuses. Os heróis das guerras são cultuados pelo povo como os mais virtuosos dos homens, e elevados a semi-deuses. Nos tempos míticos e homéricos, as guerras não se restringem a um fenômeno humano. Os conflitos são titânicos. Mas, como o logos grego encara as guerras?

Para os antigos gregos, geralmente, a guerra faz parte da ordem da natureza. E o pensamento predominante da filosofia grega, sobre a guerra, é buscada em Heráclito de Éfeso, que considerava “o conflito como o pai e o rei de todas as coisas”.( Segundo as versões mais recentes, Heráclito não teria afirmado que a “guerra” é responsável por todo o desenvolvimento, e sim o conflito. De fato, ao que parece, esta tradução deve ser privilegiada). Heráclito considerava que a situação da humanidade, em que uns eram homens livres e outros escravos, era conseqüência de conflitos. Se não existissem os conflitos beligerantes entre os elementos da natureza, nada poderia existir. Segundo Heráclito, tudo chega a existir e deixa de existir através da luta.

Desde que o termo “virtude” (areté) foi caracterizado na cultura grega, sempre se faz referência às qualidades varonis do guerreiro. O homem demonstra a verdadeira condição de seu caráter moral no campo de batalha. Quando na Ilíada Tersites reclama o fim da luta, os heróis gregos o golpeiam e o recriminam por seu comportamento feminil. Também os filósofos clássicos entendem que as guerras são a oportunidade, por excelência, para que os guerreiros formem e demonstrem suas virtudes éticas. Por isto, o homem modelar é aquele que demonstra sua valentia no combate. Geralmente os filósofos admitem a guerra entre os estados-cidades da Grécia. Platão, que tinha 23 anos quando terminou a guerra entre Atenas e Esparta, em diversos momentos foi alistado como combatente. Depois da guerra constata a devastação da Grécia, em conseqüência da Guerra do Peloponeso. Isto poderia tê-lo transformado em pacifista. Mas sua República conserva as características de um estado guerreiro, pois uma de suas classes sociais é a classe dos guerreiros. E, embora sua política visasse a justiça, contudo a estrutura de sua formação comunitária segue o modelo militar de Esparta. Platão distingue dois tipos de guerras: a guerra travada entre as cidades gregas, e a guerra contra estrangeiros bárbaros. A guerra entre gregos deve ser regulada por leis, mas nas guerras contra estrangeiros todos os excessos são permitidos. Nesta mesma linha de considerações se situa Aristóteles. Embora não se saiba se Aristóteles alguma vez se alistou no exército, como Sócrates e Platão, contudo, como preceptor de Alexandre Magno, viveu num ambiente de guerra, e com certeza tem méritos na formação do caráter conquistador do jovem Alexandre.

Mas, como para Aristóteles o Estado surge pelo fato de o homem ser um animal naturalmente social, em primeiro lugar, este Estado, deve prover os cidadãos das necessidades de outro modo irrealizáveis. Seu fim essencial é promover a virtude e, conseqüentemente, a felicidade dos súditos, mediante a educação. Por isto, fundamentalmente, Aristóteles e Platão condenam os estados que, ao invés de se preocuparem com uma pacífica educação, principalmente moral, visam a conquista e a guerra. Criticam assim a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa principal do Estado, e põe a conquista acima da virtude, pois a guerra apenas é um meio para a paz. O fato é que entre os gregos, pela primeira vez, os exércitos predominantemente são formados por homens livres, e não por mercenários ou escravos.

Interessante é que, já entre os gregos, houvesse a preocupação de que as guerras fossem declaradas e precedidas por negociações, conforme relata Tucídides, em sua “História da Guerra do Peloponeso”. E esta questão também preocupa, posteriormente. os pensadores romanos. Segundo Cícero (cf. De officiis I 34b-36) diz que “na política externa deve-se observar especialmente o direito da guerra, pois existem duas formas para se chegar a uma decisão: uma através da negociação, a outra através da violência. Como a primeira é própria dos homens e a outra dos animais, só é permitido recorrer a esta última, quando não for possível utilizar a primeira”. Mas, mesmo com esta e outras sábias considerações de Cícero, os legisladores romanos, em geral, legitimavam toda fraude contra os inimigos. Eram considerados inocentes os que empregassem a força ou o engodo contra os inimigos. Mas promessas e negociações geravam um novo direito, também em relação aos inimigos. E as promessas deviam ser respeitadas. Cícero, e outros filósofos estóicos, já se preocupavam com a humanização das guerras e com o direito de declará-las. Se fosse pelos estóicos, só seriam eticamente legitimáveis as guerras defensivas. Mas, isto em nenhum momento do Império Romano foi assumido como norma No De officiis I 34b-36, Cicero ainda diz: “Naturalmente pode-se recorrer às guerras, para que se possa viver em paz sem injustiças. Mas, uma vez conseguida a vitória, deve-se preservar aqueles que não agiram de forma cruel e desumana durante a guerra. Nossos antepassados, inclusive, deram a cidadania aos Tusculanos, Equeros, Volscos, Sabinos e Hernicos, mas arrasaram a Cartago e a Numância... É necessário também cuidar daqueles que tiverem sido totalmente vencidos pela violência... Especialmente quando depuserem as armas, e pedirem clemência aos nossos generais...” Além disto, Cícero considera legais “apenas aquelas guerras que forem declaradas depois se ter exigido os reparos (diante das injustiças) sem resultado , ou quando tiverem sido anunciadas e declaradas solenemente”.

Quando neste mundo greco-romano entrou o cristianismo, poderia-se ter esperado uma recusa total dos cristãos ao recurso à guerra. Mas as opiniões se dividiram. Os mais radicais excomungavam todo cristão que se alistasse no exército. Outros Padres da Igreja não queriam que cristãos pegassem em armas, embora não proibissem o alistamento no exército. Haja vista que nem todos os soldados romanos iam para as guerras, pois muitos exerciam outras tarefas no Império Romano, como, por exemplo, a construção de estradas. Mas esta idéia inicial de renúncia às armas, por parte dos cristãos, não se impôs para além do III século, e os soldados cristãos já exercem papel decisivo na vitória de Constantino sobre seus adversários em 313 d.C Quem, de forma mais definitiva, inspirou a atitude da Igreja cristã frente às guerras foi Agostinho (354-430). As considerações de Agostinho sobre as guerras foram assumidas pela Igreja romana no Decretum Gratiani, 1140, e permaneceram normativas (ao menos no papel!) até 1917, por ocasião da reforma do Direito Canônico. E, pode-se dizer, de certa forma, até hoje. Tomando em consideração os escritos de Agostinho, as suas opiniões sobre a guerra estão espalhadas através de suas diversas obras. Agostinho foi influenciado especialmente pelos escritos judaico-cristãos e pela filosofia greco-estoica, com especial referência a Cícero. Já Cícero havia se preocupado com o problema do bellum-justum. No cristianismo, sem dúvida, Agostinho é o responsável pela doutrina do bellum justum. Para Cícero, a legalidade de uma guerra devia ser examinada a partir da lei natural e da lei civil. Agostinho acrescentou a isto ainda a lei divina. Segundo ele, os Evangelhos não proíbem a milícia, mas a malícia, pois, segundo Lucas, quando os soldados vão ouvir a pregação de João, ele não lhes pede que abandonem o exército, mas lhes exige que se contentem com o soldo, e não pratiquem injustiças e violências contra o povo (cf. Lc 3,14). Tais considerações, posteriormente, foram tomadas como base para legitimar guerras religiosas e praticar violências contra hereges. Com esta doutrina, o Bispo de Hipona marginalizou a atitude pacifista de muitos cristãos nos primeiros séculos do cristianismo. Para Agostinho, também cristãos devotos poderiam se alistar no exército, e combater pela pax romana do Império. Deviam fazê-lo, no entanto, com moderação, sem ódio e sem ambições. Fez a distinção entre o foro íntimo e o foro externo. Pelo foro íntimo o cristão não pode matar, mas a serviço do Império, buscando a paz, isto se torna uma contingência Assim se legitimou moral e religiosamente a participação do cristão nas guerras. Dali as críticas a Agostinho. É verdade, Agostinho colocou condições para que uma guerra pudesse ser considerada justa. E, segundo alguns comentadores, se de fato se exigisse o cumprimento das condições colocadas por Agostinho, talvez não existisse guerra justa. Pois, para Agostinho, para que pudesse haver uma guerra justa deveria existir uma causa iusta. O que significa que o direito deveria estar apenas com um dos lados em conflito. Deveria existir uma recta intentio.O objetivo correto seria o restabelecimento da paz e da justiça. Além disto, os benefícios resultantes da guerra deveriam superar os malefícios. Agostinho exige ainda que a guerra seja conduzida com moderação, e declarada por uma autoridade legítima – legitima potestas – autorizada por Deus. O próprio Agostinho já desconfiava da impossibilidade de se caracterizar com clareza o motivo justo, a intenção correta e a legítima autoridade, autorizada a declarar uma guerra, em que a paz fosse resultado da justiça – pax iustitiae opera. O fato é que as interpretações da doutrina agostiniana permitiram, durante séculos, que papas e bispos benzessem armas, possuíssem seus próprios exércitos, pregassem cruzadas, fizessem e legitimassem guerras. O que muitos cristãos de hoje, mais conscientes, não podem deixar de considerar um escândalo histórico intolerável. Diante desta legitimação das guerras para os cristãos, agostinho ressalva que os cristãos lutem por amor à verdade e à justiça, e não por ódio ou por vingança, como é comum entre os pagãos.

Tomás de Aquino (1225-1274) assumiu e ampliou a doutrina de Agostinho sobre as guerras. Acrescentou o conceito de “bem comum” para a permissão de uma guerra. Atividades militares devem ter como objetivo a defesa do bem comum dos pobres, dos oprimidos e da Igreja. Neste sentido, os soldados são instrumentos nas mãos de uma autoridade legítima, que está encarregada de prevenir e castigar as práticas criminosas, inclusive com pena de morte. A pena de morte seria um meio para vingar as injustiças, incutir medo aos malfeitores, restabelecendo e garantindo a paz na sociedade e na Igreja. Por isto, segundo Tomás de Aquino, atividades de guerra são virtuosas quando animadas pelo amor à justiça. O soldado virtuoso tem o apoio divino na guerra, pois necessita da virtude da fortaleza, do ânimo e da constância. Para Tomás de Aquino, a guerra justa deve ser declarada por uma autoridade legítima; o motivo da guerra deve ser justo, i.é. querer castigar uma injustiça; a intenção da guerra deve ser boa, isto é, visar o bem comum. Em relação a Tomás de Aquino, contudo, deve-se dizer que ele pouco se preocupou com o problema das guerras, embora fosse contemporâneo das duas últimas cruzadas. Na Summa Theologiae se encontra apenas uma questão, curta, sobre a guerra (cf. II-II, q.40), enquanto sobre os anjos, por exemplo, encontramos 24 longas questões.

Teólogos e filósofos cristãos posteriores, como Francisco de Vitória (1485-1546) e Francisco Suarez (1548-1617) complementaram a teoria escolástica da “guerra justa”, com o princípio da proporcionalidade entre benefícios e prejuízos. Além da motivação justa, da autoridade legítima e da intenção reta, estes pensadores exigiam o cálculo responsável, quanto aos previsíveis resultados positivos ou negativos, antes de se iniciar uma guerra. Isto incluía o cálculo de vidas a serem sacrificadas na guerra. As considerações de Vitória e Suárez queriam dar maior consistência doutrinal à problemática das guerras, que perdurava, no âmbito cristão, desde a era constantiniana. Segundo o ensinamento destes pensadores espanhóis dos séculos XVI e XVII, a doutrina da “guerra justa” se fundamenta no direito natural, e não no Evangelho. E tudo que se inscreve na natureza humana, capaz de ser interpretado pela razão natural, é uma revelação de Deus, autor da natureza, e pode utilizar-se para formular leis morais. É o que acontece com a doutrina da “guerra justa”, pois ela é o resultado da reflexão racional sobre a sociabilidade do ser humano. Que papel desempenhariam, então, os Evangelhos nesta questão? Nenhum. Segundo estes pensadores, a condenação da violência é apenas aparente nos Evangelhos. Pois a aplicação dos Evangelhos se limita aos atos interiores. É verdade, os Evangelhos proíbem o ódio e a vingança, e ordenam o amor. Portanto, nada dizem contra a possibilidade de se guerrear sem ódio e sem vingança, quando se trata de impor um castigo justo. Vitória e Suárez também fazem a distinção entre preceitos e conselhos. A não-violência é interpretada como um conselho evangélico, reservado aos mais perfeitos, e não um preceito, obrigatório para todos os cristãos. Distinguem ainda entre atos públicos e privados. A ordem da não-violência se dirige ao indivíduo e não ao soldado, ou ao carrasco, que estão a serviço da coletividade..

Suarez, em seu escrito De bello, usa estes argumentos para combater, segundo diz, a “heresia pacifista”. Como vimos, ancora a sua doutrina no direito natural e não nos Evangelhos. Para ele, cada Estado deve assumir o papel de juiz frente ao “estado infrator”. E o único instrumento de que, muitas vezes, o Estado-juiz se pode valer para cumprir a sua função é o recurso à guerra. Mas, para que uma guerra seja justa, exigem-se certos requisitos, que, segundo Suarez, são os seguintes:

- que seja declarada por uma autoridade legítima;

- que a causa seja justa;

- que se tenham esgotado os meios pacíficos para a solução do conflito;

- que a intenção seja reta;

- que haja proporção entre o bem que se busca e o mal que poderá resultar.

Também os promotores da Reforma protestante, no século XVI, legitimaram e endossaram guerras. Martinho Lutero em 1526 responde à pergunta se “guerreiros também se podem salvar?”, e explica: “A espada foi estabelecida por Deus para castigar os maus, proteger os piedosos e estabelecer a paz, segundo Rm 13,1ss, 1Pe 2,13ss. Desta forma fica demonstrado, suficientemente, que fazer guerras e matar, e o que mais o Direito e tempos de guerra trazem consigo, foi estabelecido por Deus. O que é a guerra, senão castigar a injustiça e o mal? ... Que muito se escreva e diga sobre a tragédia da guerra, tudo isto é verdade. Mas, ao lado disto também se deveria destacar quanto maiores tragédias se evita fazendo a guerra. Com certeza, se os homens fossem justos e pacíficos, fazer guerra seria a maior praga da terra. Mas, veja que o mundo é mau e os homens não querem a paz... Nesta situação mundial de falta de paz, que ninguém agüenta, é necessário que, por breve tempo, surja a guerra e a espada. Pois a guerra justa não é outra coisa do que castigar os malfeitores e conservar a paz... Protegei-vos da guerra. Mas se, por causa de vossa função, deveis declarar guerra para vos protegerdes ou defenderdes, então deixai que as coisas vos levem, e batei. Sede homens, e mostrai o vosso vigor”.

Nesta mesma época, no entanto, já havia pensadores menos confiantes quanto ao valor das guerras, e com considerações mais moderadas, como, por exemplo, Erasmo de Rotterdam (1466-1536). Para Erasmo, “Quando uma vez a guerra estiver declarada, não é fácil terminá-la. A guerra é o mais perigoso de tudo! Por isto só se deve recorrer a ela com o apoio de todo o povo.

Os motivos da guerra devem ser prevenidos. De vez em quando é melhor fechar um olho: uma disposição pacífica terá também como reação uma disposição pacífica. Às vezes é preferível comprar a paz. Quando se considerar quanto dinheiro se gastará na guerra, e ~a vida de quantos cidadãos poderá ser preservada, então a compra da paz parecerá barata, mesmo que se tenha que gastar muito dinheiro. Pois, independente do sangue dos cidadãos, teria sido necessário gastar muito dinheiro na guerra...

Finalmente, já se está no melhor caminho para a paz, quando de todo o coração se deseja a paz. Quem, de fato, quer a paz recorre a todos os meios possíveis para conservá-la. Ele procura ignorar ou superar os impedimentos para a paz. Com certeza terá que se preocupar bastante para que um tão grande bem como a paz seja permanente”. Erasmo pensa conservar a paz educando os príncipes e o povo. Neste sentido, envia a Carlos V um escrito com o título “Educação de um príncipe cristão”. Na mesma linha pacifista e humanista de Erasmo se encontram Tomás Morus (1478-1535) e o espanhol Luis Vives (1492-1540). Assim como Erasmo, Vives acentua a importância da educação para a conservação da paz, e escreve para a Rainha Maria I, da Inglaterra, um texto, intitulado “Educação de uma mulher cristã”.

A primeira característica comum destes filósofos humanistas é a reação contra o culto da guerra, uma espécie de religião da cavalaria alemã, herdeira da religião germânica da guerra. Estes pensadores já conhecem a realidade sórdida da guerra, e mostram que ela nada apresenta de glorioso. Protestam também contra os excessos da ideologia da “guerra justa”, que deforma o mandamento do amor dos evangelhos, e que, segundo Erasmo, fez com que a Igreja tenha “ingerido muitas leis humanas”. Mas, estes humanistas, não propõem uma condenação absoluta das guerras. Tomás Morus, por exemplo, sendo chanceler de Henrique VIII da Inglaterra, se vê na necessidade de solicitar ao Parlamento recursos para fazer guerra contra a França. Além disto, em sua Utopia a defensiva bélica é essencial. Morus, como homem de governo, conhece muito bem as intrigas palacianas. Conhece a sociedade, que ele critica e ridiculariza. Revolta-se contra os procedimentos bárbaros da justiça, e demonstra grande compaixão para com os agricultores expulsos de suas terras, tendo que abandonar seus rebanhos de ovelhas, transferindo-se como mendigos para as cidades, onde muitos deles são enforcados por terem roubado coisas mínimas. Considera como principais motivos das guerras a propriedade particular e o dinheiro. A solução, segundo Morus, seria um estado comunista, federativamente unido a outros estados com sistemas semelhantes Juntamente com os demais humanistas, Morus também confia que pela educação pacifista dos príncipes, e, com o auxílio da imprensa, recentemente descoberta, a vontade e o apelo à paz chegue a todos os homens.

Pelo que expusemos até agora, constatamos que, já antes dos tempos modernos, e no período de transição para a modernidade, as preocupações com a guerra e a paz foram relevantes. Mas, tomando em consideração estas reflexões, e as que se seguiram até os tempos atuais, também se constata que todos os esforços dos filósofos, dos teólogos, dos humanistas e políticos para limitar ou suprimir as guerras foram em vão. A guerra, mal necessário para Agostinho, passou a ser guerra santa para os cruzados, guerra heróica no Renascimento, guerra esportiva para os príncipes nos séculos XVII e XVIII, guerra patriótica no século XIX. Foi necessário chegar ao século XX, com as duas guerras mundiais, e o grande número de conflitos regionais, para que a humanidade novamente se espantasse, de forma mais intensa, com sua capacidade de violência e crueldade. E este espanto perdura até os nossos dias, com as diversas guerras em andamento pelo mundo a fora, e com a violência caótica perto de nós, principalmente nos grandes centros urbanos.

Diante desta situação de conflitos bélicos, que perduram no decorrer da história, convém que continuemos examinando as opiniões que os filósofos expressaram, sobre este fenômeno, durante e após os tempos modernos. Vejamos.

As guerras a partir dos tempos modernos

É muito interessante examinar as opiniões de alguns dos filósofos modernos, quanto ao problema das guerras. Numa comunicação de Congresso, como esta que estou expondo, naturalmente, não é possível fazer referência a todos os filósofos que opinaram sobre a guerra. Por isto, apenas algumas referências. Para iniciar, sirvam de exemplo, Francis Bacon (1561-1626) e Tomás Campanella (1568-1639). Bacon , em seus Ensaios expressa ser um militarista confesso. Inclusive, deplora o crescimento da indústria, por considerar que ela deixa os homens despreparados para a guerra. Lamenta a paz prolongada, pois ela abrandaria o guerreiro que existe no homem. Mesmo assim, a exemplo de Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem revoltas e traições. Para ele, “o meio mais seguro para evitar sedições... é afastar a causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de onde virá a fagulha que irá atear-lhe fogo... A substância da sedição é de dois tipos: muita pobreza e muito descontentamento... As causas e motivos das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações das leis e costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão generalizada; o progresso de pessoas indignas e estranhas, as privações; soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao ofender um povo, faz com que ele se una em uma causa comum...” Além de outras sugestões, Bacon recomenda que a melhor receita para se evitar revoluções é uma distribuição eqüitativa da riqueza: “O dinheiro é como o esterco, só é bom se for espalhado”.

Praticamente na mesma época de Bacon, na Inglaterra, Tomás Campanella (1568-1639), na Itália, escreve a sua Civitas solis (cidade do sol). Diferentemente de Morus e de Bacon, homens que circularam nos ambientes de poder, Campanella é um frade sem os suficientes conhecimentos dos arcanos do poder civil. E, do fundo de sua prisão, imagina uma cidade com sistema comunitarista. Nesta cidade, todos os habitantes, sem distinção de sexo ou idade, devem participar em sua defesa. Todos são guerreiros. A educação militar se inicia aos 12 anos. Os ensinamentos consistem em treinar os jovens como se deve atacar os inimigos com seus cavalos e elefantes; como manejar a espada, a lança e as demais armas; também se ensina a arte da montaria. Tomam parte nestes treinamentos militares tanto homens como mulheres. Para Campanella, embora seja frade, a guerra é um meio para exercitar as virtudes cívicas. A guerra protege os habitantes da Cidade do Sol da moleza. De tal forma que se devem reunir imediatamente em conselho de guerra se forem ofendidos, humilhados ou roubados. E, em caso de guerra, são convidados a levarem consigo seus filhos ao campo de batalha, para que, desde jovens, como os pequenos lobos, se acostumem a ver sangue. As mulheres acompanham seus homens, na retaguarda, para apoiá-los, entusiasmá-los e curá-los, em caso de ferimentos. A Cidade do Sol está protegida por diversos muros, e seus habitantes, homens, mulheres e crianças, são treinados para defenderem estes muros, atirando pedras e derramando substâncias incandescentes sobre os inimigos. Mas a decisão para se iniciar uma guerra só pode ser tomada numa grande assembléia, onde todos os habitantes, maiores de 20 anos, votam. Na Cidade guerreira de Campanella, portanto, apesar de tudo, se respeita a vontade da maioria. Nela todos são livres, embora indistintamente soldados.

Para propor tal espírito guerreiro para sua cidade ideal, Campanella, com certeza, não se orientou pelos ensinamentos do Evangelho, onde Cristo ensina o amor aos inimigos, e manda oferecer a outra face, em caso de ofensa. A literatura que o inspirou deve ter sido a literatura bélica dos guerreiros da antiguidade greco-romana, inclusive o De bello galico” de César, e os escritos de tantos outros entusiastas das aventuras e heroísmos bélicos do mundo pré-cristão.

Aqui poderiam ser mencionados ainda muitos outros livros destes tempos belicosos, como, por exemplo, A arte da guerra(1520) de Maquiavel, o Leviatã(1651) de Hobbes, com sua teoria da guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) no estado de natureza, etc Nestes tempos, mal se tinha saído do sistema feudal medieval, e muitas províncias, cidades e aldeias se encontravam em constante conflito. Mas basta a menção de Bacon e Campanella para se ter uma idéia do pensamento da época. Certo é que a civilização cristã, predominante na Europa durante séculos, sempre admitiu a teoria da “guerra justa”, quando se tratasse de restabelecer a ordem. E esta teoria também foi seguida pelo Direito civil, com bases tanto no Direito Romano, como na filosofia agostiniano-tomista da escolástica. Ninguém se conseguiu impor contra o ius ad bellum. Além disto, os filósofos, preocupados com a dignidade da natureza do ser humano, não fizeram considerações apenas sobre o ius ad bellum, mas, mais vezes, refletiram sobre o ius in bellum. Mostravam-se preocupados em humanizar as guerras. Isto é, propondo leis que protegessem os vencidos.Torna-se, contudo, muito questionável que seja possível humanizar ambientes de guerra. Pois, como muito bem diz o filósofo argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884), em seu livro El crimen de la guerra, a guerra é uma espécie de loucura, uma perda da razão, e em tal situação, tudo o que é considerado criminoso num contexto normal, se considera permitido. Isto, de fato, se confirma em todas as guerras (também na guerra contra o Iraque). O homem em guerra não se orienta pela sã razão. E o melhor dos homens, em seu ambiente familiar, na guerra é capaz de praticar crueldades inimagináveis. Por isto, não se deveria falar em “direito à guerra, ou na guerra”, mas no crime de toda a guerra.

Quem, nos tempos modernos, analisou classicamente a questão do ius in bellum e o ius ad bellum foi o holandês Hugo Grocio (1583-1645), em sua obra, em três volumes, De iure belli ac pacis libri tres (1625). Esta obra assinala uma importante etapa, que pretende conduzir ao pacifismo jurídico. Grocio, contudo, não pode ser incluído entre os pacifistas, pois chega a admitir as guerras de intervenção contra soberanos que oprimem seus súditos, apoiando-as em razões morais e jurídicas Todo o primeiro livro de Grocio, e parte do segundo, está dedicado aos problemas da guerra, sem a esperança de uma “paz perpétua”, como posteriormente espera Kant. Grocio se fundamenta, em primeiro lugar, no direito natural para legitimar a “guerra justa”. Argumenta que, em questões de moral natural, é permitido recorrer àqueles meios que conduzem à realização do fim desta mesma natureza. Disto segue, que estamos autorizados a recorrer àquilo que é necessário para garantir os nossos justos direitos. Por isto, se eu não puder salvar a minha vida de outra forma, eu tenho o direito de usar toda a força que me ajude a salvá-la. E aquele que assim proceder não deve ser repreendido. E, mencionando o Direito Romano, Grocio lembra que os legisladores romanos legitimavam qualquer fraude contra os inimigos, enquanto não houvesse promessa ou acordo de paz. Mas, uma vez feitos acordos, as hostilidades deveriam parar.. Para Grocio, nas guerras, os inocentes devem ser preservados Segundo ele, os cristãos só fazem guerra para remover os obstáculos que impedem a paz. E a paz entre as nações não se garante sem armas. E armas custam dinheiro, e dinheiro só se obtém através de impostos. Neste sentido, a legitimidade dos impostos para se garantir a paz, preparando a guerra Grocio não confia que o homem consiga instaurar uma paz duradoura pelo simples uso da razão. A paz somente poderá ser obtida pelo respeito a determinadas obrigações, que fluem da fé. Tais obrigações devem ser observadas não apenas por causa da perversidade dos homens, mas para prevenir a exasperação dos sentimentos. O que se exige para se conservar a amizade entre os indivíduos, também vale para a amizade entre os povos. Por isto, todas as relações de amizade devem ser observadas com escrupulosa devoção e honra. Especialmente quando estas amizades são fruto da reconciliação entre inimigos. A paz somente se garante se as máximas da Lei Divina e das leis humanas estiverem inscritas nas mentes dos cristãos poderosos. Estes devem se considerar ministros ordenados para governar os seres humanos, que entre todas as criaturas são as mais queridas por Deus.

Apesar deste viés religioso de Grocio para garantir a paz, ele não deixa de ser criticado, por exemplo, por Juan Bautista Alberdi, por querer humanizar as “guerras justas”, legitimando-as pelo Direito Natural e pelo Direito Romano. Apesar das críticas que lhe foram feitas, Grocio continua, até hoje, um clássico, quando se trata do Direito da guerra (ius ad bellum), e do Direito na guerra (ius in bellum), que permitem a condenação dos criminosos de guerra. O fim principal de sua obra é humanizar a própria guerra, e submetê-la cada vez mais à ordem jurídica, sem propriamente acreditar que ela fosse possível de ser supressa definitivamente.

Até Grocio o conceito forte para legitimar guerras era o conceito de “guerra justa”, articulado no mundo cristão desde Agostinho. Antes de prosseguirmos, por isto, vejamos resumidamente os critérios que muitos, ainda hoje, estabelecem para que uma guerra seja considerada justa:

Grave injustiça praticada por uma das partes em conflito;

grave culpa moral por uma das partes. Apenas injustiça material não é suficiente;

comprovação inquestionável desta culpa;

inevitabilidade da guerra, após fracasso de todas as tentativas para um entendimento;

proporção entre a culpa e os meios de punição. O uso de meios que ultrapassem o tamanho da culpa são injustos e não permitidos;

certeza de que a vitória fará justiça à causa;

intenção reta de, através da guerra, promover o bem e evitar o mal. O bem do Estado que se pretende obter pela guerra deve ser maior do que o mal que se causará;

forma correta de se conduzir a guerra: sem ultrapassar os limites da justiça e do amor;

evitar graves intranqüilidades para outros Estados, e para a cristandade em geral, não diretamente envolvidos na guerra;

declaração da guerra por uma autoridade, autorizada em nome de Deus, para ser juiz em tal situação.

Kant (1724-1804) defende uma idéia “pacifista” semelhante à de Grocio em seu trabalho Sobre a paz perpétua. Ultrapassa, contudo, Grocio, propondo uma justiça supranacional. Distancia-se dos argumentos em favor das “guerras justas”, e julga necessário que se abandone este conceito. Ele se dá conta que a história dos Estados não se orienta simplesmente pelos princípios de um puro direito ou da moral, mas sua força motriz, muitas vezes, são os interesses e as razões de Estado. Por isto, para Kant a paz perpétua deve ser uma “idéia reguladora”, um ideal da ação política. Não chega a ser um objetivo que, de fato, se possa alcançar em um tempo previsível. Em todo o caso, para Kant as guerras não são uma fatalidade da natureza, mas conseqüências da ambição e concupiscência humanas. Conseqüentemente, a paz é fruto da razão civilizatória. A paz deverá ser instaurada pela razão. Para isto os governos devem ser republicanos, com democracia parlamentar. Além disto, Kant exige uma supressão dos exércitos permanentes nacionais. Em substituição propõe um poder supranacional, com um exército internacional. De forma irônica, apresenta apenas uma alternativa à humanidade em relação às guerras: ou a submissão a um poder bélico supranacional, que resultaria numa “paz perpétua” convencionada; ou, então, as guerras, com a conseqüente “paz perpétua” nos cemitérios. As principais condições, que Kant exige, para uma paz convencionada, mais sólida, são:

Nenhum tratado de paz, que secretamente se previne contra uma futura guerra, é, de fato, um verdadeiro tratado de paz

Nenhum Estado ( grande ou pequeno) deverá adquirir outro Estado: por herança, troca, compra ou doação.

Exércitos permanentes nacionais (miles perpetuus) deverão ser extintos com o tempo

Não deverão ser contraídas dívidas comerciais com outros Estados.

Nenhum Estado deverá se intrometer violentamente na constituição e na administração de outro Estado.

Nenhum Estado, em período de guerra, deverá produzir animosidades entre os seus inimigos, que impeçam a mútua confiança num futuro tratado de paz, como, por exemplo, praticando assassinatos traiçoeiros, envenenamentos, desrespeito a capitulações, incentivos à traição, etc.

Em relação às considerações que Kant faz sobre o fenômeno da guerra é possível formular juízos distintos. Num primeiro momento, parece que a guerra, para Kant, tem uma função pedagógica, indutora do progresso político e moral da espécie humana. Mas, uma vez cumprida esta função, a razão prática teria o dever de abandonar o recurso bélico, instituindo o Estado de direito e da paz. O que permite situar Kant entre os filósofos críticos da guerra, que propõem uma filosofia da história teleologicamente pacífica. Em que a guerra ocupa um tempo pedagógico para a humanidade construir uma ética social.

Mas, Kant não finaliza as reflexões filosóficas sobre o fenômeno da guerra. Os pensadores posteriores voltam ao tema. E, em nosso tempo, especialmente a bibliografia bélica se multiplica. Por isto, torna-se cada vez mais difícil sintetizar todas as opiniões dos escritores de hoje, que tentam analisar esta tragédia humana, que é a guerra. Embora não seja possível dar a devida atenção a todos os filósofos que, desde Kant, se preocuparam com as guerras, contudo seria uma lacuna imperdoável se não perguntássemos qual a posição de Hegel, quanto às guerras, bem como a opinião de mais alguns outros pensadores posteriores. Então, vejamos.

G.W.Hegel (1770-1831) em vários momentos de sua obra analisa a questão das guerras. Com a sua opinião de que a história progride a partir dos conflitos, pode-se incluir Hegel entre os filósofos guerreiros. Hegel, vivendo entre as campanhas de Frederico, o Grande, da Prússia, e as façanhas de Napoleão Bonaparte, e envolto pelos bafos da Revolução Francesa, procurou entender o significado mais profundo das guerras. Qual a função que elas exerceram na constituição dos povos e das nações? E ele constata que os estados existiam para garantir a independência dos povos e para guerrear. Como professor da Universidade de Jena, Hegel pôde vivenciar a derrota de Frederico, o Grande, na batalha de Jena, travada em 14 de outubro de 1806. Na “Fenomenologia do Espírito” IV, A, na parte intitulada “Dominação e Escravidão”, narra a famosa parábola do “senhor e do escravo”, pela qual procurou entender a razão das guerras. Hegel rejeita a idéia de Hobbes e J.J. Rousseau (1712-1778) de que a sociedade e o Estado tenham surgido de um contrato primordial, superando o estado de natureza, e iniciando o estado civil. Neste pacto, todos teriam concordado em ceder seus direitos a um governante, que passava a ser o responsável pelo bem comum, assegurando a vida e a propriedade dos seus súditos ou concidadãos. Os motivos e as conseqüências da saída do estado de natureza para o estado civil não são os mesmos para Hobbes e para Rousseau. Contrariamente a eles, para Hegel o Estado teria surgido de uma luta entre dois contendores. O vencedor desta luta primordial tornou-se o senhor, o derrotado virou seu escravo. Desta forma, toda sociedade civil está composta por dominadores e por dominados, e não por cidadãos com direitos iguais, como ensinavam os liberais da época. Já que o Estado se formou através de um enfrentamento, seus cidadãos são guerreiros. Os escravos ficam excluídos. O vencedor, contudo, não se satisfaz com a submissão dos derrotados, seus escravos, e busca constantemente o reconhecimento junto a outros vencedores, chefes de outros Estados. Mas, como conseguir isto sem recorrer à espada? Deste modo, para Hegel, os estados estão condicionados à guerra, pois só assim conseguirão garantir o devido respeito. Por isto, para Hegel, as guerras são inevitáveis. Fazem parte da evolução da História. E a História é a evolução do Espírito Absoluto no tempo, como ensina em sua Introdução à Filosofia da História. A tragédia da guerra e todos os sofrimentos que ela causa são, para Hegel, parte normal deste processo da evolução do Espírito.

Interessante é que, contemporâneo a Hegel, viveu no mundo prussiano de Berlim, o militarista e teórico das guerras, o general Karl Marie von Clausewitz (1780-1831) que, como Hegel e no mesmo ano, morreu de cólera. Em seu livro “Sobre a Guerra” (Vom Kriege) considera a guerra como um ato de violência, que busca reduzir o inimigo à nossa vontade. Clássica é sua afirmação de que “ a guerra é a continuidade da política por outros meios”. Desta forma, a guerra, para Clausewitz, é um fenômeno integrante da condução política, e não aponta para qualquer possibilidade de um dia a humanidade se libertar da violência da guerra. Mas adverte os políticos de que não deveriam iniciar uma guerra, ou ao menos não seria racional iniciá-la, sem antes examinar o que se pretende alcançar com a guerra, e na guerra. A primeira questão é a finalidade, depois o objetivo. O livro de Clausewitz exerceu enorme influência no pensamento militar e político durante e após o século XIX. Define a guerra como um ato de violência cuja intenção é compelir o oponente a realizar nosso desejo. As perspectivas e opiniões de Clausewitz podem ser resumidas da seguinte maneira:

A paz, perpétua ou limitada, pode ser um ideal razoável, mas somente isto. Não existe possibilidade de erradicar a guerra do panorama humano. Por isto, permanece válido o princípio: “se queres a paz, prepara a guerra”.

É uma utopia pensar que com o progresso da civilização diminuirá o caráter destrutivo das guerras. A história mostra o contrário: quanto maior o progresso civilizatório, maior o poder destrutivo das armas bélicas.

Por isto, já que é assim, convém conhecer as causas das guerras, e as estratégias militares para enfrentá-las.

A guerra não é um ato isolado e independente, é a continuação da política por outros meios. É importante, por isto, ter um conhecimento científico das guerras, como se tem um conhecimento científico da política.

A guerra não é somente violência e vontade de poder, mas também, como todo ato humano, manifestação da inteligência e da razão.

Sendo a guerra inevitável, os mais interessados em conhecer a sua natureza devem ser os países frágeis, sob constante ameaça, devendo permanecer, por isto, em estado permanente de prevenção defensiva.

No mesmo mundo argumentativo de Hegel e Clausewitz podemos situar Marx e Engels (1840-1880). Estes relacionam as guerras com a luta de classes, com a conseqüente interrelação entre a luta de classes e a libertação nacional dos povos. Os principais pontos, que se referem à guerra, em Marx e Engels, podemos resumi-los da seguinte forma:

A história da humanidade sempre foi a história da luta entre classes. E, por desgraça, a história progride, em geral, pelo lado mau.

A violência é a condutora da história. Pois, entre direitos iguais, quem decide é a violência.

Há diversos tipos de violência. Por isto é necessário diferenciar a violência individual da violência estatal ou social.

Também existem diferentes tipos de guerra: guerras justas e guerras injustas. São justas aquelas que se fazem para libertar classes e povos oprimidos.

Na época moderna, a guerra civil é a continuação da luta de classes na sociedade dividida. A guerra de guerrilha, para a libertação nacional-popular, é a continuação da guerra civil, num mundo em que predomina o imperialismo.

O mal, que a guerra representa, somente poderá ser evitado quando se tiver resolvido, satisfatoriamente, o problema social. Ou seja, numa sociedade sem classes.

Reflexões conclusivas

Contrariamente a Hegel, Clausewitz, Marx e Engels os pensadores mais sensatos e pacifistas do nosso tempo, consideram que a guerra não tem nada de racional, de heróico, de belo ou virtuoso. E quem se preocupa em querer entender o fenômeno da guerra deveria pesquisar o campo da irracionalidade do ser humano, e não sua dimensão racional e espiritual. Mas, embora pensadores e ativistas em favor da paz cheguem a tais conclusões, contudo continuam as polêmicas sobre a possibilidade, ou não, de uma futura era de paz para a humanidade. No momento, o ideal da “paz perpétua” de Abbé de Saint-Pierre ( 1658-1743) e Kant, bem como a manifestação do homem pacífico na natureza de J.J. Rousseau (1712-1778) ainda não venceu o homo belligerandi da guerra de todos contra todos do Leviatã de Hobbes.

Reconhecemos que faltaria ainda muito para completarmos a análise das obras filosóficas que se preocupam com as guerras. E a humanidade, com certeza, ainda durante muito tempo terá que conviver com a praga das guerras, que, de fato, nada têm de racional. Pelo contrário, são a negação de todos os valores humanitários. Desta forma, tem toda razão Juan Bautista Alberdi quando afirma que não existe “direito de guerra”, mas apenas “crime de guerra”. A história das guerras nos mostra que, praticamente todas, têm os seus intelectuais, filósofos, teólogos e cientistas, que as apóiam, as legitimam e que, muitas vezes, se entusiasmam por elas. Para Alberdi isto só acontece porque, também estes intelectuais, ao menos temporariamente, perdem a razão. Assim como Hegel, Nietzsche não repara na estupidez das guerras. No início da I Guerra Mundial, houve uma penca de filósofos que se entusiasmaram com este conflito. Entre os quais estava Max Scheler, que, mais tarde, se arrependeu profundamente deste seu equívoco, escrevendo um livro em que analisa “A idéia de paz e o pacifismo”. Na II Guerra Mundial, um dos staffes intelectuais de Hitler eram os “cristãos alemães”, composto principalmente de pastores luteranos de Berlim. Também hoje, o militarismo e os governantes americanos, têm os seus teólogos e filósofos que legitimam a barbárie que cometem mundo a fora.

Visitando museus europeus, encontramos em todos eles obras de arte que apresentam a beleza e a glória das guerras do passados. Os quadros, que se assemelham a Guernica de Picasso, são raros. A linguagem bíblico-religiosa ainda glorifica o deus guerreiro do Antigo Testamento, quando, com certeza, o verdadeiro Deus jamais compactuou com os homicídios das guerras, pois ele é o Deus da vida. A psicanálise de Freud, pessimisticamente, considera as guerras fruto das pulsões de Eros e Thanatos. Pulsões constitutivas do psiquismo humano, que podem ser orientadas, mas não eliminadas.

Diante das reflexões feitas, não podemos ser ingenuamente otimistas, nem utópicos, de que em futuro próximo se instaurará a “paz perpétua” na terra. Mas com toda lucidez podemos declarar que as guerras não são fruto da razão ou do espírito, mas resquício da barbárie, da irracionalidade e da loucura humanas. A paz se alcançará preparando a paz, e não a guerra. Por isto, o fim do militarismo, da indústria das armas, da concorrência desenfreada da ciência, do comércio e da indústria. Neste sentido, os filósofos, promovendo a ética do diálogo, a ética do “rosto do outro”, a ética da solidariedade, da cidadania universal poderão contribuir para que a irracionalidade das guerras seja superada pela racionalidade da paz.

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(NB: Existe hoje um amplo debate sobre o fenômeno da guerra, que pode ser conferido em inúmeros sites na Internet. O Autor, deste trabalho, se utilizou amplamente deste material, disponível na Internet, para elaborar suas considerações sobre “Os Filósofos e a Guerra” (O Autor).

INÁCIO STRIEDER- Professor de Filosofia- Recife-PE