Burocracia
Burocracia.
Esta palavra, empregada a todo instante, tem, no entanto, uma conotação política extremamente importante nos nossos dias, qual seja o futuro da liberdade e da privacidade a que todo o cidadão e cidadã têm direito.
Geralmente quando as pessoas fazem referência à burocracia estão querendo apontar o excesso de documentos e de fases que uma petição qualquer tem de, obrigatoriamente, tramitar até que seja dada uma solução ao pleito, seja em órgãos governamentais, seja na iniciativa privada, causando perda de tempo e incomodo com a espera da resposta e muitas vezes com a má vontade e antipatia de quem atende.
Max Weber, renomado sociólogo, quando se referiu à burocracia, nos primeiros estudos realizados no início do sec. XX pretendia verificar as condições “burocráticas administrativas” que propiciavam maior ou menor eficiência às organizações, de múltiplas espécies, que começavam a crescer, tanto em tamanho e complexidade, bem como na importância e no volume de suas transações e contatos com o resto da sociedade.
Max Weber não chegou a perceber, com clareza, o que outros estudiosos da sociologia, da administração e da política verificaram com o correr do tempo, com o crescimento da burocracia como instrumento necessário para a organização e funcionamento de quaisquer organizações. Estava e continua, a burocracia, pouco a pouco, silenciosamente se transformando, engrandecida que foi e é pelas mãos de ciosos funcionários que idolatram a ordem, a hierarquia, a precisão, valorizando ao extremo a necessidade do conhecimento máximo de todos os elementos que participam das fases de uma decisão qualquer, em entidades publicas ou privadas, como paradigmas supremos de toda organização. Esses funcionários, anônimos, como que se sentem recompensados pelo crescente poder que exercem apressando, ou protelando ou dificultando uma decisão, tornando-se mecanismos autônomos de poder, muitas vezes não legitimado nem pelo consentimento consciente dos dirigentes, nem pelo voto do povo ou dos parlamentos.
O número de registros, de certidões, de alvarás, de guias de recolhimento, de autorizações várias que se consubstanciam em documentos ou em registros eletrônicos, são, hoje em dia, de tal forma detalhados em termos de caracterização dos cidadãos e cidadãs – nome, filiação, endereço, telefone, referências, rendimentos, poupanças, patrimônios, estado civil, contas bancárias, compras a crédito, registros médicos, fotos, impressões digitais, configuração da Iris dos olhos, timbre de voz – que além de identificar possibilitam o conhecimento da mais intima realidade das suas vidas, violando a necessária e natural privacidade a que cada um tem direito. Praticamente nada se faz nas sociedades modernas sem que se tenha de obter um documento permissório, uma carteira, um protocolo – estamos enredados pelas exigências burocráticas. Se nos voltarmos para os registros de operações econômicas, trabalhistas, políticas, e as realizadas via cartões de crédito sobre o consumo das pessoas ou instituições, tudo poderá ser conhecido por todos, pois, nos dias atuais, as informações são condensadas em bancos de dados intercomunicáveis, passando, aí sim, ter a burocracia a completa quebra de sigilo da privacidade a que se tem direito, um direito natural – que não depende só das leis, mas da própria natureza humana e da sua condição de pessoa.
Cada um de nós é um ser individuo que detém o direito natural de resguardar sua vida, negócios, relacionamentos, consumos, rendas, do conhecimento de outras pessoas não autorizadas a freqüentar nossa intimidade. Os nossos deveres, para com a sociedade, são cumpridos em função da consciência honesta da existência de leis e normas oriundas do processo democrático de representação, que originou os parlamentos, que possuem, então, a legitimidade de elaborar leis que obriguem a determinados procedimentos públicos e outras atitudes coletivas de comportamento.
Justificam-se os burocratas de que as organizações econômicas e sociais, o próprio Estado, até as famílias, necessitam dessas informações, cada vez mais detalhadas e atualizadas, para bem poder exercer suas atividades fim, controlando se o povo está cumprindo com suas obrigações de pagar impostos, prestações, votando, apresentando-se para o serviço militar, para a renovação de vacinas, origem e destino dos seus deslocamentos espaciais, quantificando o fluxo de demanda de transportes, localizando ocorrências criminais com rapidez, infrações de transito, bem como o atendimento médico de urgência quando necessário, e mais uma infinidade de boas ações e intenções que poderiam aqui ser elencadas.
Tudo bem, isso é verdade. O progresso material do mundo contemporâneo deve muito ao desenvolvimento e ao aperfeiçoamento das técnicas de administração que, para serem eficientes, necessitam de algum aparato burocrático.
Porém o povo não está se dando conta do perigo que a burocracia excessiva está criando para o exercício pleno e responsável da liberdade – apanágio da cidadania. Cuidando apenas do seu vertiginoso e cansativo dia a dia, que a todos envolve, as pessoas não se dão conta de como estão sendo cada vez mais vigiadas, e porque não dizer controladas, condicionadas fortemente na sua maneira de viver, em razão dos rigores burocráticos impostos por esta nova classe dirigente, quase invisível, que não possui nenhum mandado popular para “espionar” a sociedade como estão tranquilamente fazendo em nome da modernidade e da eficiência. Mas o fato irretorquível é que qualquer “mau caráter”, qualquer pessoa eticamente mal formada e que tenha acesso a esses bancos de dados, poderá, como já tem ocorrido, se imiscuir na vida intima dos cidadãos e cidadãs, alvos de seus interesses para as mais torpes e indevidas manipulações, chantagens, pressões políticas, morais e econômicas. Não basta afirmar que os bancos de dados são indevassáveis, pois é sabido que a ação ilegal de muitas pessoas possibilitou a venda desses dados para a difusão de propaganda eleitoral, nos endereços residenciais, e a realização de pesquisas sociais com perspectiva de conhecer melhor o padrão de consumo de cada segmento da população e assim, por meio de marketing mais informado, poder vender mais produtos e serviços. Isto não é modernidade, mas sim pressão indevida sobre as famílias para que pensem diferentemente e votem e consumam como desejam a burocracia e a classe dirigente do país. Isto é um escândalo pouco denunciado e conhecido.
A legislação para a proteção da cidadania, neste aspecto, é fraca. O próprio governo sempre quer mais acesso ao conhecimento da vida intima do povo sob o pretexto de bem governá-los e de bem cumprir com suas obrigações fiscalizadoras, extrapolando, sem grandes problemas de consciência, os limites do sigilo prometido, legal e legitimo, com suas ações criminosas e antidemocráticas. O sistema jurídico, as universidades, os partidos políticos, os estudantes, os sindicatos, os artistas - as históricas vanguardas de defesa dos direitos humanos - estão retraídas. Será que tem algum receio ou cansaço para lidar com tema tão complicado? A burocracia é um instrumento geral de administração para a conquista do bem comum e da justiça social, não de opressão do povo.
É hora da cidadania, moralmente sadia e intelectualmente esclarecida, se organizar para dar um basta a este progressivo cerceamento da liberdade, aqui no Brasil e em todo o mundo. Não há tempo a perder, vamos à luta.
Eurico de Andrade Neves Borba, Ana Rech, março de 2012.