O BOM LADRÃO
No calendário brasileiro há algumas datas especialmente significativas. Entre elas o carnaval, a sexta-feira da paixão, a Festa de São João, o Sete de Setembro, o Natal e o Ano Novo. A data que desperta mais sentimentos de compaixão, tristeza, arrependimento e penitência é, sem dúvida, a Sexta-feira Santa: O Cristo coroado de espinhos morrendo na cruz, a Mãe com seu filho morto nos braços... Neste dia alguns também se lembram que Jesus foi crucificado entre dois ladrões. Um deles um bom ladrão, que arrependido recebe de Jesus a promessa de que ele seria o primeiro homem a ser salvo, e entrar no céu juntamente com o Salvador. Na tradição religiosa judaico-cristã o primeiro homem, criado por Deus, Adão, se mostrou um ladrão, roubando o fruto proibido no Paraíso. E por ter praticado este furto, perdeu irremediavelmente seu emprego como jardineiro no jardim do Éden. Para que Adão não voltasse mais a ocupar o mesmo ofício, Deus colocou nas portas do Paraíso um anjo com espada de fogo. No novo emprego, fora do Paraíso, Adão teria que ganhar seu pão com o suor de seu rosto. Nada mais das mordomias do trabalho paradisíaco. O seu trabalho seria duro, entre cardos e espinhos. Interessante, em toda esta mitologia religiosa, é que o primeiro homem perdeu seu status privilegiado por causa de sua ladroagem. Por outro lado, o primeiro homem a ser salvo pelos méritos de Cristo também foi um ladrão: o bom ladrão. Por isto não é de estranhar que menções de roubos, furtos, latrocínios, gatunagem, unhas compridas... acompanhem a história da humanidade, e que haja vasta literatura sobre apropriações indevidas de bens alheios em todas as culturas e em todas as épocas. Nesta história, o Brasil não é exceção. Desde os inícios de nossa colonização há relatos sobre desvios de recursos públicos, sonegação de taxas, de apropriações indevidas pelos administradores da Colônia. Não faltam as menções aos santos-de-pau-oco para o contrabando do ouro. Isto se prolongou no Império e na República. E muitos políticos foram exímios gatunos. Até nosso primeiro Imperador apelou para a gatunagem, quando mandou marcar com os distintivos do Império os seus pangarés, para vendê-los com preços de cavalos “nobres”. Na República as notícias de enriquecimentos ilícitos, de caixas dois, de mensalões, de sonegações, corrupções, de assaltos, de roubos, furtos e latrocínios não param de alimentar a mídia diária, até hoje. Até notórios gatunos continuam prestigiados com a presidência de importantes comissões em nosso Parlamento. Já houve presidentes da república que entraram nos palácios governamentais com pertences pessoais que cabiam numa maleta. Quando deixaram o Governo, após alguns anos, os seus pertences não cabiam mais numa dezena de carretas carregadas de muambas. Diante deste quadro histórico, qual a atitude mais realista? Escandalizar-se? Indignar-se? Fazer propostas moralizantes? Acomodar-se? Nada disto é suficiente. Temos à disposição a experiência histórica, os avanços civilizatórios nas políticas democráticas, na conscientização dos homens em geral, na compreensão de uma vida digna humanizada. E nesta compreensão não cabem mais tiranias, abusos de poder, ladroagens, injustiças e desonestidades. As mentalidades escravagistas e rapineiras devem ser enquadradas numa legislação efetiva sem privilégios.
Para quem desejar se ilustrar na arte dos que furtam, recomendo a leitura da “Arte de Furtar”, livro polemicamente atribuído ao Pe. Antônio Vieira, e do “Sermão do Bom Ladrão”, este autenticamente de Antônio Vieira. Nestas obras se mostra meridianamente quem, como, quando, onde, em que circunstâncias se rouba e furta. Mostram também estes escritos as consequências da “arte de furtar”. A leitura e discussão destas obras, neste momento histórico, serão muito úteis a qualquer cidadão brasileiro, e especialmente aos nossos políticos. E quem, por acaso, é ladrão, com a leitura destas obras, terá a oportunidade de transformar-se em um “bom ladrão”.
Inácio Strieder é professor de filosofia- Recife-PE