OS ENTORNOS

Há algum tempo reportagem de TV mostrou os entornos de Brasília. A Capital Federal foi situada como uma “ilha”, cercada por um caos social de cidades satélites. Mas, em vez de se falar imediatamente em favelas, caos social, preferiu-se denominar estas periferias de “entornos”. A linguagem nos permite recorrer a eufemismos quando queremos expressar, com mais delicadeza, certas situações desagradáveis. Por exemplo, em vez de chamarmos conjuntos habitacionais de favelas, é mais delicado denominá-los de “assentamentos subnormais”, ou de “ranchitos” como em Caracas. No mundo financeiro não se costuma denominar os banqueiros e donos de cartões de crédito de agiotas. Eles apenas cobram juros altos. Os corruptos não passam de espertos. Inúmeros charlatães no mundo religioso já se autodenominaram de bispos, apóstolos, missionários, profetas, sacerdotes, mães e/ou pais disto ou daquilo, videntes, conselheiros, etc. Políticos e partidos políticos arrogantes, com vocação ditatorial ou tirânica se apresentam como “pais dos pobres”, salvadores da pátria, redentores, defensores dos marginalizados e excluídos... Empresários escravocratas se julgam benfeitores sociais por darem emprego a centenas de desempregados, mesmo que estes salários sejam aviltantes. Sindicatos se dizem defensores dos trabalhadores, quando na verdade são “pelegos”, gozando de mordomias que lhes advêm, muitas vezes, dos poderes políticos dominantes.

Assim poderíamos continuar com a ladainha dos eufemismos. Na história sempre encontramos aqueles que gostam de encobrir a sua verdadeira identidade com eufemismos, jogando suas manipulações sobre os mais fracos. Assim, por exemplo, quando se analisa o alto endividamento da população com cartões de crédito, com créditos fáceis e enganadores, a culpa sempre é da população, sem educação na área econômica. Nunca se responsabiliza os juros extorsivos dos bancos e cartões de crédito. Muitas escolas no país se encontram em situação precaríssima porque, se diz, o povo não tem educação. As crackolândias se espalham por muitas cidades. De quem é a culpa? Da juventude, dos que se viciam, dos traficantes, da Bolívia, Peru, Colômbia, do polígono da maconha. Nada se diz da ausência de políticas do “cuidado” da população. Por que alguém planta maconha, coca e outras plantas alucinógenas? Nada se faz para substituir o plantio destas culturas por outras alimentícias ou úteis de outra forma. Geralmente estas não são valorizadas no mercado. Simplesmente reprimir as características sociais e culturais dos “entornos” não resolve (há algum tempo um delegado, meu aluno, me contou que em visita a Brasília um seu colega o convidou para assistirem, nos “entornos” da capital, o leilão de uma virgem!). É preciso organizar a sociedade e hierarquizar seus produtos, suas necessidades, suas profissões, seus valores humanitários. Do contrário não se conseguirá paz e convivência civilizada entre os cidadãos. Se muitos dos nossos aspectos políticos e sociais continuarem como estão, até nossos “centros” se tornarão “entornos”. E o conceito de “entorno” simplesmente é um eufemismo para violência, corrupção, miséria, manipulação das pessoas num mundo cão, sem respeito, honestidade, solidariedade e consciência crítica.

Inácio Strieder é professor de filosofia- Recife-PE.