TEMOS LEIS
O Ocidente se civilizou à sombra das leis. No Livro das Leis, Platão modificou seu projeto de República ideal, com filósofos-reis governando o povo. Neste seu último livro Platão ensina que a referência suprema para o poder é a Lei, e não mais um indivíduo sábio que decida personalisticamente como organizar e governar a cidade. Ainda hoje Platão é um ponto de partida indispensável para caracterizar a civilização ocidental. Nesta referência às Leis, os povos romanos legitimavam suas guerras, alegando que os bárbaros não tinham leis, enquanto eles não eram bárbaros, pois tinham Leis. Na convivência social, cumprindo o corpo legal vigente, o cidadão pode prever como seu companheiro vai reagir nas ações do dia-a-dia. E cada um sabe o que lhe é permitido fazer para conviver digna e tranquilamente com seus contemporâneos. Mas quem está habilitado a elaborar as Leis? Segundo Platão, e tantos outros politólogos que se seguiram a ele, os cidadãos mais sábios, prudentes, experientes e éticos. Infelizmente na história, poucas vezes, constata-se efetivamente que os poderes se preocuparam em exigir estas virtudes de seus legisladores. Mas, sem perigo de equívoco, pode-se afirmar que um povo é mais ou menos civilizado, mais cumpridor das leis, na medida em que é capaz de exigir de seus legisladores que apresentem um currículo de integridade cívica. Em outras palavras, que o legislador seja um ficha-limpa. Isto simplesmente é uma exigência implícita no conceito civilização. Se, por isto, um país, sua constituição, ou seus poderes judiciais admitem fichas-sujas entre seus legisladores, isto acontece porque ainda não entendemos o que é ser civilizado. Portanto, político (legislador) ficha-limpa é simplesmente um pressuposto civilizatório. E nenhuma constituição de país civilizado pode passar à margem deste princípio. Pois, imagine-se com que espírito de dignidade e respeito um cidadão honesto vai observar leis que legisladores corruptos e desleais elaboraram e lhe impuseram. E que dizer dos cidadãos não honestos? Simplesmente vivem à margem da Lei.
Claro, jamais encontraremos um povo, por mais civilizado que seja, em que todos os políticos sejam ideais. Mas o ideal é o horizonte de referência. Na realidade, contudo, não podemos desprezar o meio termo virtuoso. Além disto, a Lei é inócua quando não existem os mecanismos que cuidem de seu cumprimento. De nada adianta ter milhares de leis maravilhosas, quando os aparelhos legais não zelam para exigir seu cumprimento. E quantas vezes o cidadão comum se defronta com uma justiça capenga. A bela ideia de cidadãos iguais perante a lei sucumbe inúmeras vezes perante o poder econômico, o tráfego de influências, as amizades escusas, os acordos de cavalheiros sem transparência. E a sensação que temos é de uma distância enorme entre a letra e o efetivo cumprimento das Leis. E por esta fragilidade da consciência civilizada de que somente somos civilizados na medida em que temos leis, elaboradas pelos melhores cidadãos, e que os agentes responsáveis por seu cumprimento também são honestos e sábios, faz com que nossos tribunais estejam abarrotados de processos. Por exemplo, tenho conhecimento de um processo de Inventário em Atibaia/SP que já dura mais de 20 anos, e assim devem existir milhares pelo país afora. Neste Processo, em Atibaia há irregularidades tão primários, que, no meu entender, um estudante de primeiro ano do Curso de Direito já se escandalizaria, com advogados desonestos, juízes não tomando consciência de petições, ou não dando o devido despacho. Bem, mas isto é apenas um exemplo, e não podemos generalizar. Mas se isto acontece num Estado, que se pensa ser o mais adiantado, o que não estará acontecendo pelos recantos mais remotos do país? Da minha parte, gostaria de caracterizar o meu tempo histórico com a expressão romana: “temos leis”, por isto somos civilizados. Leis que estivessem sendo respeitadas e aplicadas. Leis elaboradas por legisladores sábios, honestos e com atitudes civilizadas em suas próprias vidas. Em outras palavras, por legisladores ficha-limpa.
Inácio Strieder é professor de filosofia- Recife- PE.