Complexo do Alemão

Nasci e fui criada no Complexo do Alemão, a e exemplo do Elymar Santos que sempre cita de onde veio em suas entrevistas, não tenho vergonha disso. Hoje já não moro mais lá, porém lá estão quase todos meus familiares, as pessoas que amo, os vizinhos que cresci chamando de tio e de tia e que embora não consangüíneos são meus “tios” e “tias” até hoje, quando ligo sempre pergunto: - E vó, como vai a tia Ana e a tia Arminda? Sobreviveram ao tiroteio da semana passada?

Por falar em Elymar Santos... Ele realmente se orgulha de onde nasceu, e quando, nas poucas vezes apareceu por lá subindo a rua, bate na casa de um e de outro com esse mesmo hábito, “e o tio fulano, e a tia cicrana, vão bem?”. Beija e abraça, e também não demora muito, porque o lugar é "chapa quente”.

Tenho maravilhosas recordações daquele lugar, Anos Novos, Natais, Carnavais, Arraiás de Festas Juninas, churrascadas, peixadas, aniversários, todos passados junto com uma grande família, que até em dia de enterro fazia motivo de reunião. Festas que começavam na sexta-feira e só terminavam na segunda, porque a maioria tinha que ir trabalhar. Comilanças e beberagens que nunca findavam sem alguém passando mal ou dando boas risadas. E no meio disso tudo uma recordação nunca sai da minha mente...

Certa vez li que a infância é UMA PRISÃO SEM MUROS, verdade... Para uns deliciosa, para outros traumatizante. A minha foi deliciosa, e a lembrança que me prende àquele lugar é quando eu subia o morro com 5 anos de idade, cachorro esmagado debaixo do braço, cumprimentando todos que encontrava na subida do escadão: - Oi tio Adão, bom dia tio Jance.

Sentava lá no fim da escadaria no sopé do morro conversando com meu cachorro pequinês “Fica quietinho aí, viu?”. E de lá do alto ficava, olhando os aviões levantando vôo no Galeão, e admirando o mar (na época límpido da Ilha do Governador). Dali descia pra casa da Valéria, amiguinha de infância, lugar onde aprendi andar de bicicleta... Para toda criança, aprender a andar de bicicleta sem as rodinhas, é um marco na vida, em vez do A.C e D.C*, para as crianças deveria ter A.BR e D.BR (leia-se Antes da Bicicleta de Rodinhas e Depois da Bicicleta de Rodinhas). Torna-mo-nos mais confiantes e nos julgamos mais capazes, o momento é uma conquista e emoção, tal qual quando se fisga um grande peixe na hora da pescaria. Só descia o escadão quando ouvia minha mãe, minha avó ou minha madrinha gritarem lá de baixo “Vem almoçar, menina”. Daí eu descia desembestada, esmagando o cachorro embaixo do sovaco escadão abaixo. Isso foi em 78.

Nessa época o Complexo do Alemão nem era complexo... Era só Morro do Alemão, um morro meio careca, salpicado de matos, uns rasteiros outros mais altos, não havia barracos e nem favela, as casas que havia eram casas espaçosas e bem construídas que, embora no escadão, pertenciam à famílias que ali moravam há muito tempo. E todo mundo se conhecia...

Nesse tempo, uma criança como eu, aos 5 anos, podia subir e descer tranquilamente o morro, pois não havia tráfico, nem CVs nem ADAs, nem balas perdidas. Difícil de acreditar, mas era...

O tempo passou e as coisas foram mudando, aliás, esse um dos motivos pelo qual nos mudamos para Zona Oeste, lugar que na época era um rio de calmaria, cheio de pés de fruta e estradinhas de terra, ótimas para andar de bicicleta.

E olha que na época da mudança, a violência e os problemas do lugar talvez nem chegassem a 1% do que é hoje, os bandidos eram muito diplomáticos, passavam no portão de casa e falavam: - Bom dia, tia Cacilda, bom dia tia Arminda!

Nos dias de hoje, sou obrigada a assistir esse desfile de notícias disformes e mal intencionadas manobras de politicagens. Porque o inocente morador realmente acha que a Polícia Civil, a Polícia Militar, os Fuzileiros Navais, o Core e o Bope, se instalaram para “salvar” esses pobres coitados que JÁ PASSAM POR ISSO HÁ MAIS DE 20 ANOS... Porque uma linda “faveladinha” mandou uma carta para as “otoridades” pedindo liberdade e paz no morro, ou porque uma velha senhora ligou para o Disque Denúncia falando que não agüenta mais os Bailes Funk na porta da casa dela. Façam-me o favor... Claro que não! Houve muita chance, muito tempo para se fazer isso... Por que só agora?

A resposta é simples...

Hoje, uma das maiores concentrações de obras do PAC em comunidades se encontra naquela área: Vila Olímpica, moradias do Minha Casa, Minha Vida, uma UPA gigante, novas escolas, uma inclusive com o nome do Jornalista Tim Lopes, novas creches e até um teleférico que vai do de um morro ao outro passando por cima do Largo do Itararé, aos moldes do de Medelín na Colômbia, que vai dar lá em cima do Morro do Alemão, bem pertinho do Areal que era o Q.G. do tráfico do Complexo.

O presidente Lula, é claro, já tinha programado a visita de inauguração para até dezembro de 2010, e com certeza, que na comitiva estariam Paes, Cabral, Benedita, entre outros. Um prato cheio para quem está no fim do mandato, deixar obras prontinhas e inauguradas para os próximas candidaturas.

Agora vamos aos fatos: como é que eles subiriam no morro para esta inauguração do tal teleférico com um Complexo do Alemão "pinhado" de bandidos que “adoram” o Cabral e o Paes? Sem chance, né?

Que cena bonita: Lula inaugurando o teleférico, sendo televisionado internacionalmente e os traficantes empunhando seus fuzis nos arredores querendo sair no noticiário "Aê, é nóis na fita!"

A politicagem é tão gritante que confiscaram um caminhão de sardinhas em Niterói (em Niterói!) por estar na época de reprodução dos peixinhos e foram levar justo para distribuir no Complexo do Alemão. Céus, quantas comunidades carentes ficam no meio desse trajeto? Por que não distribuir no Morro do Bumba que desbarrancou todo há bem pouco tempo? Ah, mas a imprensa está toda focada lá no Alemão...

Interesses excusos...

De tudo isso só lamento uma coisa, sinto falta do meu cachorro e de ver os aviões levantando vôo no alto do morro sem ter que me preocupar com o tiroteio, e espero que meus filhos tenham um lugar seguro para aprender a andar de bicicleta.

* Antes de Cristo e Depois de Cristo