PROTEÇÃO À VIDA POR NASCER - a questão do aborto
Em certos momentos históricos as sociedades levam a debate temas polêmicos que exigem solução. Um destes temas, a longo tempo em destaque no Brasil, é a liberação e descriminalização do aborto. Os que argumentam a favor do aborto insistem que a atual lei penal é hipócrita. Em vez de inibir os abortos estaria incentivando as mulheres em estados conflituosos a agirem irresponsavelmente, procurando aborteiros, inclusive com perigo para a saúde pessoal e pública. Ou, conforme as rendas, a procurarem clínicas que fazem abortos fora da lei. O que tornaria a atual lei injusta, associal e discriminatória. Argumentam também que a atual lei não respeita a dignidade da mulher, impedindo que ela mesma decida livremente sobre seu corpo. Argumentam ainda que a atitude antiaborto provém de campanhas da Igreja Católica, e que os não-cristãos, num estado leigo, ficam obrigados a normas éticas que não correspondem à sua visão de mundo. Por fim, argumenta-se que a atual legislação, que proíbe o aborto, obriga muitas mulheres a trazerem ao mundo crianças defeituosas. A mesma legislação não tomaria em consideração os problemas sociais, que a gravidez e o nascimento trazem para muitas mulheres e famílias.
À base destes argumentos advoga-se o direito ao aborto, e seu consequente ônus para a previdência social, nos seguintes casos: - em caso de perigo para a vida e a saúde da mãe (motivo médico); - na previsão do nascimento de criança com graves defeitos (motivo eugênico ou genético); - em caso de gravidez por estupro (motivo ético ou criminal – o que a lei brasileira já permite!); - quando a criança vier a representar grave peso social para a mulher ou a família (motivo social); - finalmente, quando o casal, ou a mulher, assim o decidirem (motivo subjetivo, por direito à liberdade de decidir sobre suas vidas particulares).
Evidentemente, em questões polêmicas e éticas, toda sociedade democrática deve confrontar-se objetivamente com os problemas que a afetam, e discuti-los com serenidade e racionalidade. Por isto, proponho-me a fazer algumas considerações sobre a necessidade de o Estado proteger a vida por nascer.
Por detrás da realidade dos abortos, certamente, existe muita miséria humana, que merece a compreensão e a ajuda de todos. Mas, por outro lado, há também, em tudo isto, um assustador contingente de egoísmo e irresponsabilidade por parte dos homens e das mulheres, que vêem na eliminação de nascituros uma solução fácil para seus problemas e conflitos. Senão vejamos.
Os resultados da biologia moderna demonstram indubitavelmente que o embrião, no seio materno, não atravessa uma assim chamada fase pré-humana. É verdade, sua vida depende da mãe, mas já é vida por si, tal como depois do nascimento. De forma alguma é um órgão do corpo da mãe. Estes resultados são simplesmente científicos e não dependem de concepções teológicas ou de uma determinada visão de mundo. São dados que não admitem outra explicação, e demonstram que o embrião, desde sua concepção, possui vida humana.
Já que, desde o princípio, existe verdadeira vida humana, segundo a tradição humanística ninguém tem o direito de matar esta vida. A maioria dos médicos, no mundo inteiro, se entende como protetora da vida humana, desde o seu início. O que inclusive corresponde ao Juramento Hipocrático, compromisso de todo médico desde a Antiguidade. De acordo com o princípio de proteção à vida humana, a União Mundial dos Médicos esclareceu, já em 1970, na “Declaração de Oslo”: “A lei moral suprema do médico é o respeito pela vida humana”. Isto também encontramos numa frase do “Juramento de Genebra”: “Eu terei o maior respeito pela vida humana, desde o momento de sua concepção”. De acordo com estes textos de Oslo e de Genebra, os médicos continuam jurando, fundamentalmente, o mesmo que Hipócrates, o Pai da medicina ocidental, já exigia de seus discípulos no séc. V a.C.: “A ninguém darei veneno mortal, mesmo que me for solicitado. Igualmente não darei conselhos neste sentido. Da mesma forma, jamais darei à uma mulher drogas para matar vidas em brotação”. Por aí se vê que a exigência de proteger a vida nascitura não é uma exigência dos tempos cristãos. É convicção civilizatória universal, nascida há séculos entre os homens de diferentes raças, religiões e culturas.
Evidentemente, ninguém poderá impedir a mulher de decidir livremente conforme lhe dita a sua consciência. Mas quando se trata da vida de uma criança, que dela vai nascer, ela deverá respeitar o direito à vida humana que este ser já em seu seio possui. Além disto, toda mulher que aborta (por aborto natural ou induzido) necessita de apoio psicológico. Pois o aborto produz nela consequências que afetam naturalmente seu psiquismo, com sentimentos de vazio, depressão, perda, culpa, etc.. Estes sentimentos variam de intensidade de mulher para mulher. Muitas vezes, quando se discute a questão do aborto, as próprias mulheres esquecem este aspecto psicológico da questão, que pode se tornar um trauma para toda a vida. Diante disto, a geração de filhos exige responsabilidade. O que implica que todo ato sexual humano exija responsabilidade. Por isto, o Estado, em vez de conceder leis de permissividade sexual, deveria se preocupar mais em fortificar os laços familiares, educando os cidadãos para uma paternidade responsável, com planejamentos para a geração dos novos cidadãos por meios eticamente aceitáveis. E, neste sentido, a facilitação legal de abortos não é solução aceitável.
Há aqueles que defendem que não compete ao Estado proteger a vida nascitura com penalidades legais. Esta seria uma questão restrita à liberdade de consciência dos implicados. É claro, as leis não podem estender-se a todas as atitudes humanas. Ódio, inveja, ciúme, ingratidão, falta de amor, geralmente, não entram nas regulamentações do Estado, embora firam os princípios da convivência humana. O Estado somente intervém onde atos externos ferem os direitos dos cidadãos, ou lesam o bem comum. Disto flui o dever do Estado de contribuir no fortalecimento da consciência ética e jurídica dos cidadãos. Mas a consciência ética não se forma unicamente no temor às leis penais. E não necessariamente é ético o que não estiver explicitamente proibido por leis. O ideal é que cada indivíduo aprenda a decidir livre e responsavelmente pela própria consciência. E se os indivíduos, por natureza, fossem éticos não haveria necessidade de leis. No entanto, a antropologia filosófica ensina que o homem é um ser eticamente ambíguo, passível de perversão. Por isto a necessidade do Estado com a obrigação de proteger com leis o direito fundamental do homem à vida. E nesta proteção também se inclui a vida humana nascitura. Esta proteção se torna necessária para que a vida nascitura não esteja à mercê de arbitrariedades. Contudo não adianta apenas proibir o aborto. A verdadeira proteção à vida nascitura consiste em proporcionar moradia, saúde, alimentação condigna aos cidadãos; além de instrução sexual, apoio à vida familiar, respeito à mulher, profissão condigna, superação das discriminações das mães solteiras, etc... Quando a sociedade vive em condições infra-humanas, é claro, não podemos avaliar eticamente o comportamento humano. Pois, em tal situação, não existem as condições pré-éticas para um julgamento ético. Por isto, penso que, antes de discutirmos a liberação ou descriminalização do aborto, é preciso cuidar do contexto ético da vida humana civilizada. Não basta apenas aconselhar platonicamente as mulheres grávidas, em situações conflituosas, a aceitarem gerar seus filhos. É preciso que lhes sejam oferecidas possibilidades de vida justas, dignas e humanas para poderem assumir e criar sua prole.
Inácio Strieder é professor de Filosofia – Recife/PE