A POLÍTICA SOCIAL NA REPÚBLICA E NAS LEIS DE PLATÃO

Introdução

O que me leva a fazer algumas reflexões sobre problemas sociais a partir da República e das Leis de Platão? Em relação aos problemas sociais, penso, não há necessidade de explicação maior, pois vivemos num país (Brasil) profundamente marcado por questões e conflitos sociais não solucionados. Isto, apesar das sábias orientações que encontramos em muitíssimos pensadores que nos antecederam, iniciando com as obras clássicas da República e das Leis de Platão. Inclusive, segundo alguns comentadores, todos os problemas filosóficos foram propostos por Platão. A filosofia posterior se restringiria a repetir, a comentar, a completar ou a ampliar as reflexões platônicas. Se isto é verdade ou não, pouco importa. O certo é que Platão ainda desperta um fascínio no mundo filosófico. E quem o desconhece possui lacunas em seu pensar. Neste sentido, propus-me a ler com mais cuidado a República e As Leis para conhecer melhor a política social de Platão. Em nossos estudos filosóficos, de graduação e pós-graduação, geralmente recomendamos a leitura e o estudo da República e se dá de menos importância às Leis. Neste sentido, este trabalho pretende também satisfazer uma curiosidade pessoal: conhecer melhor o último escrito de Platão, As Leis, já que durante minha formação pouca ênfase se deu a esta obra, tendo-se sempre privilegiado A República. O sistema filosófico de Platão, muitas vezes, nos é apresentado como uniforme, coerente e imutável. Contrariamente a isto, verifica-se, analisando A República, um escrito da maturidade, e As Leis, um escrito da velhice, que não é bem assim. A filosofia de Platão é uma filosofia em movimento, assim como a sua compreensão do homem nos mostra um ser em constante construção. É verdade, o mundo ideal de Platão é perfeito, imutável, mas o mundo transitório em que vivemos objetivamente é uma constante saída da caverna e retorno a ela. E é nesta dialética da saída e do retorno que se desenrola a vida dos homens em sociedade. Mas, como organizar esta dinâmica do viver? O que fazer neste mundo de luz e de sombras? Platão, justamente, se preocupa em organizar este mundo concreto e objetivo. Por isto, desde já, é preciso inocentá-lo de um puro utopismo, propositor de uma política irrealizável. A sua utopia se enraíza em realidades situadas, que se repetem na história, já que se relacionam com a natureza do próprio homem. Desta forma, rememorando as preocupações políticas e sociais de Platão, estamos também refletindo sobre os nossos problemas sociais e políticos. Por isto, ainda hoje, é estimulante voltar a Platão. O que é o nosso propósito com esta comunicação.

1. A relação entre As Leis e A República

Em As Leis, uma obra composta por 12 livros, três interlocutores em Creta dialogam sobre tudo que interessa à constituição de uma sociedade capaz de proporcionar aos seus cidadãos a felicidade (a eudaimonia). Como este diálogo é uma obra escrita na velhice, estando inclusive inacabada quando Platão morreu, durante muito tempo não mereceu o interesse devido dos seguidores e intérpretes de Platão, sendo até tida como apócrifa. Mas hoje, praticamente todos os que se dedicam ao estudo de Platão lhe dão a merecida importância. Inicialmente houve um certo espanto, quando se verificou que a proposta política e social das Leis não coincidia sempre com as propostas da República. Mas, mesmo admitindo as divergências, permanecem fundamentalmente os mesmos objetivos nos dois escritos. Aspectos essenciais são afins e convergentes. Platão, ao que parece, não quis relativizar ou superar a sua República. Tudo indica que a sua idéia de sociedade ideal continua sendo a descrita na República. No entanto, a sociedade que propõe nas Leis seria a “segunda melhor”. Isto estaria dito nesta passagem das Leis:

Todo aquele que usar a razão e a experiência deverá reconhecer que se

deverá construir a segunda melhor sociedade... Tal sociedade e tal

constituição serão a primeira, e as leis serão as melhores, na medida em

que for possível e vigorar em toda esta sociedade o antigo provérbio, que

diz: amigos têm todas as coisas realmente em comum (cf. Leis 739A3-740C3).

Segundo alguns analistas de Platão, a passagem acima estaria indicando que, para Platão, a sociedade descrita na República seria a melhor possível, mas agora, nas Leis, para os habitantes da nova sociedade a ser constituída, o ideal da República seria alto demais. A sociedade das Leis seria a segunda melhor, embora a primeira em compatibilidade com a natureza humana concreta. Mesmo que admitamos isto, deve-se contudo considerar que na passagem da República para as Leis acontecem diferenças fundamentais. Por exemplo: na República a comunhão dos bens, das mulheres e das crianças se refere apenas às duas primeiras classes de cidadãos. A classe dos trabalhadores está excluída destas exigências sociais. Nas Leis, embora se acentue a comunhão em tudo para a felicidade de todos, este possuir em comum é de outra categoria do que na República, e compromete eticamente todas as classes de cidadãos. Nas Leis o apelo na busca do extremamente elevado ideal ético é dirigido a todos os cidadãos indistintamente. Nesta sociedade ideal das Leis, agora a melhor sociedade possível, denominada “Magnésia”, cada qual será responsável por sua família, por seus bens, embora deva contribuir para as refeições em comum dos cidadãos. Moderadamente, cada cidadão poderá acumular riquezas. O que for excessivo será confiscado pelo Estado. O ouro e a prata permanecem propriedade exclusiva do Estado, mas haverá uma moeda corrente (cf. Leis 744D-745A; 742AB). O Estado ficará responsável pela educação e os cidadãos serão valorizados na medida em que a buscaram. A própria função do Estado é educativa. Os cargos e as funções públicas serão atribuídas aos cidadãos por mérito no conhecimento e na experiência. Já não serão mais os filósofos-reis que governarão a cidade, mas os cidadãos mais sábios e mais experientes. Os legisladores farão leis justas, pois leis injustas não são leis. Antes de serem feitas as leis, que devem visar o bem comum, os cidadãos deverão ser consultados, e após terem sido elaboradas os próprios legisladores deverão explicar os aspectos positivos e vantajosas destas leis para a felicidade coletiva. Portanto, em Magnésia já não existirão tiranos, ou alguns iluminados, que a bel-querer formulem leis de qualquer forma. A utilidade e o sentido das leis devem ser explicados aos cidadãos. Os cidadãos serão cidadãos na medida em que conhecerem e observarem as leis. Nas Leis encontramos as linhas fundamentais da filosofia política de Platão. Suas preocupações estão voltadas para a organização da cidade, para a educação dos cidadãos, para a necessidade do conhecimento, e, num sentido mais específico, para a relação do homem com as leis. As leis que regulam, estipulam e moderam as relações dos indivíduos na convivência diária. As Leis nos revelam um Platão com longa experiência de vida, mais realista, embora continue com uma visão idealista para avaliarmos as condições do mundo transitório.

2. O Estado ideal: da República para As Leis

O “Estado” platônico conservou até hoje seu significado como uma das maiores criações filosóficas do idealismo. Com certa razão se identificaram analogias entre a proposta platônica e a hierarquização do poder medieval cristão, ou com os estados modernos funcionais e militaristas. Estas analogias, no entanto, são menos fundamentadas do que a aproximação platônica com o socialismo moderno, que encontramos, por exemplo, na utopia de Thomas Morus. Com todas estas aproximações, devemos, contudo, considerar que o idealismo de Platão está profundamente inserido na realidade grega de seu tempo. Desdenhosamente Platão se refere aos bárbaros, mas não exige a abolição da escravatura. Apenas não permite que algum grego seja vendido como escravo, ou alguma cidade de seu povo seja invadida e destruída. Contudo, em sua proposta de uma cidadania mundial recomenda que se trate os bárbaros assim como os gregos se tratam entre si. A referência mais significativa para a proposta platônica foi, sem dúvida, o estado guerreiro e aristocrático dos espartanos. Mas, é preciso considerar que a proposta platônica do Estado Ideal não resultou apenas da mente de um sonhador. Concretamente Platão quis contribuir para que se evitasse a desintegração da comunidade grega. Como filósofo sente-se chamado a constituir-se em reformador social. Neste sentido, seria bom, se nos queremos inspirar em filósofos dos tempos clássicos, que hoje reavaliemos o sentido da filosofia e a função dos filósofos em nosso tempo, e na sociedade em que vivemos.

Para constatar o realismo platônico, basta considerar suas observações filosófico-históricas sobre a origem e desenvolvimento do Estado (cf. Rep. II, 369ss). Segundo ele, o Estado nasce da necessidade de satisfazer as carências econômicas fundamentais. A divisão do trabalho, a produção das mercadorias, o comércio, o uso do dinheiro como meio de troca, a institucionalização de uma classe guerreira e administrativa são aqui claramente incrementadas. Será que aqui não poderíamos encontrar uma antecipação da teoria marxiana de que as superestruturas culturais dependem da situação econômica?

Embora se articule no horizonte do idealismo, contudo Platão propõe seu ideal de Estado de acordo com a natureza do verdadeiro Estado: proporcionar aos cidadãos as condições para sua maior felicidade (eudaimonia), de acordo com a mais elevada virtude, que apenas poderá ser adquirida, conhecida e praticada pelo exercício da filosofia. Qual é, então, a estrutura do Estado platônico? Assim como o homem é um organismo em pequenas dimensões, o Estado é um homem em grandes dimensões. Os níveis da alma humana, na visão platônica, se repetem no Estado. Desta forma, analogicamente ao que constitui o interior do homem, na República, Platão distribui os cidadãos em três classes básicas:

1. O povo, a massa dos agricultores, os trabalhadores braçais e os comerciantes estarão preocupados com as necessidades diárias. Eles são os empregadores e os responsáveis pela alimentação das outras duas classes, constituindo a base econômica do Estado, sem contudo terem participação na administração do mesmo. Serão, no entanto, protegidos pelos governantes. Esta classe poderá possuir propriedade e constituir família. Os mais dotados poderão ascender às outras classes. Também eles são cidadãos, amigos e irmãos das outras classes.

2. Os guardiões, ou ajudantes, cuidarão de preservar o Estado de possíveis ataques por parte de inimigos externos; enquanto internamente cuidarão da observância das leis. Para preservar esta classe de possíveis interesses pessoais, a sua educação, seus filhos e suas mulheres, estarão coletivamente nas mãos do Estado. Nenhum interesse particular deverá afastá-los de suas obrigações com o bem comum. Qualquer interesse particular, ou propriedade particular, será visto como um mal. Todos devem considerar-se participantes de uma grande família. As mulheres, essencialmente, serão educadas da mesma forma como os homens. Os mais destacados e sábios entre os guerreiros passarão para a classe dos governantes.

3. Os governantes, ou filósofos, constituem a classe superior. A sua vocação está em fazer as leis e supervisionar a sua observância. Cuidarão, especialmente, da educação. Assumem, quando convocados, os cargos mais elevados, e gastarão seu tempo vago em meditações filosóficas, com assuntos científicos e aproximações com a idéia do Bem, que, neste contexto, representa o cume da ética platônica.

Também as quatro virtudes cardeais estão relacionadas com esta divisão tríplice da sociedade. A principal virtude da classe do povo é o autodomínio dos instintos; dos guardiões é a virilidade; e dos governantes, a formação espiritual. A justiça e a eticidade são obrigações do Estado como tal. Pois o Estado está aí não para cuidar do bem-estar de uma classe, mas do todo. Para Platão a ética é inseparável do Estado, portanto da política. E os governantes deverão ser os primeiros a terem sua vida pautada pela ética. Platão jamais admitiria um governante corrupto, sofista, no sentido de misturar a verdade com falsidades. Situação com que hoje nos defrontamos quase diariamente.

A característica fundamental do Estado platônico é a educação da sociedade humana, em sua busca do mais elevado ideal ético, cujo cume é a justiça. Na República esta exigência somente vale para as duas classes superiores. Nas Leis isto já será diferente, como veremos. Faz parte desta educação o exercício musical e a ginástica. O que, para alguns, causa estranheza. Por que a música na educação platônica do cidadão? A presença da ginástica já é mais compreensível, pois retrata a idéia da “mens sana in corpore sano”. Para conferirmos a importância da música, deveríamos fazer uma experiência no sentido de exigirmos dos nossos estudantes de filosofia o treino musical. Talvez tivéssemos a surpresa de que começassem a filosofar com mais qualidade e rigorosidade. A música, com certeza, também para Platão, era a expressão sublime da harmonia espiritual. Por isto, quem se envolvesse com esta arte demonstraria em todos os seus relacionamentos uma vida harmônica. Dali a importância da música na educação platônica.

A preocupação do Estado pelo cidadão já começa antes de seu nascimento. Platão recomenda que os homens mais saudáveis e nobres se unam com as mulheres de igual categoria. O “filósofo” não se acanha em intervir decisivamente na vida sexual da comunidade. Nesta preocupação eugênica de Platão diversos críticos apontam uma intromissão indevida do Estado na vida particular do cidadão. No entanto, hoje, os conhecimentos genéticos nos mostram que a sociedade deve-se preocupar com a geração de seus futuros cidadãos. E onde há combinações genéticas doentias poderão nascer cidadãos defeituosos. O que não é desejável em qualquer sociedade. Dali, parece nada demais que Platão se preocupe com a integridade dos futuros cidadãos. A educação dos jovens tem como finalidade produzir cidadãos harmonicamente constituídos no corpo e no espírito. A formação espiritual se iniciará pela narração dos mitos, excluindo-se destes, no entanto, tudo que seja imoral e indigno no que se refere aos deuses, aos heróis ou ao outro mundo. Posteriormente se incentivará a leitura e a escrita. Nos anos entusiásticos, dos 14-16 anos o ensino enfocará especialmente a poesia e a música; nos anos posteriores, entre 16-18 anos, o jovem será familiarizado com a matemática e as ciências. Mas, tudo que incentiva moleza, sugere a perversão dos costumes, ou apresenta um duplo sentido, deve ser banido da educação musical e poética, inclusive Homero. Isto para que o jovem aprenda a estimar o bem e o belo, e seja orientado para o mais nobre sentido da vida ética, e de uma adequada representação de Deus. Além disto, aprenderá a não temer a morte, e a não apegar-se aos bens terrenos. Dos 18-20 anos, o jovem receberá treino militar. Após isto se seguirá uma primeira seleção. Os menos aptos permanecerão na classe dos guardiões. Os mais dotados receberão uma formação mais acurada e sistemática, voltada para aquilo que é o mais nobre e o mais belo entre os homens. Em relação a estes, posteriormente, será feita uma segunda seleção, quando alguns serão classificados para assumirem cargos burocráticos mais práticos; os outros continuarão os seus estudos para assumirem, posteriormente, com cerca de 50 anos, os cargos mais elevados no governo do Estado.

Com seu amplo projeto de um Estado ideal, Platão faz uma crítica tão acurada da situação do Estado e das condições sociais de seu tempo, que nem hoje o socialismo consiga ultrapassá-la. Interessante é que na República (cf. 551 D) já mencione a existência de dois “Estados” , o dos ricos e o dos pobres. Com palavras contundentes apostrofa o endeusamento do dinheiro e a especulação financeira. Além disto, faz menção à uma “juventude dourada”, que necessariamente levará a sociedade à ruína. Nas Leis (cf. I, 626 D) sua crítica ainda se torna mais contundente, mostrando que em tal situação acontece a “guerra de todos contra todos”. Reformas parciais da situação vigente apenas adiariam os problemas. Por isto, para Platão, seria necessária uma mudança radical das disposições sociais e um processo continuado de limpeza.

Platão confia que seu projeto é realizável, pois corresponderia à natureza das coisas. Embora, saiba que o ideal, no mundo transitório, apenas se consiga manifestar parcialmente. O que se possa conseguir, exige que se reoriente a mentalidade popular de acordo com um novo espírito ético. As constituições de Estados não crescem nas árvores, mas se enraízam na mentalidade e na cultura dos povos. Por isto, institui a sua Academia com um método educativo que prepare alunos para viverem uma vida bela, boa e justa como cidadãos. É necessário preparar uma nova geração para que seu Estado se implante. Otimisticamente, Platão confia que as atuais gerações se deixarão convencer que seu sistema é o melhor. Pois, todos se convencerão de que os males não deixarão de existir enquanto os governantes não forem filósofos, ou os atuais governantes não começarem a filosofar (cf. Rep. V, 473 D).

Como este primeiro idealismo otimista de Platão, proposto na República, fracassou no reino do tirano Dionísio, pelo final da vida o nosso filósofo apresentou, nas Leis, um projeto do segundo melhor Governo, mais adequado à realidade do mundo político concreto. Como pano de fundo desta sua nova proposta, Platão toma o interior de Creta. A característica deste novo Estado seria agrária. Em vez dos filósofos-reis, os governantes deste Estado seriam os cidadãos mais prudentes e mais experimentados, que se orientariam em seu governo por leis escritas e em constante elaboração por conselhos compostos pelas diversas classes de cidadãos. Nas escolas estatais predominariam os cursos de matemática e música. O Estado não se situaria mais acima das famílias, nem da propriedade particular, apenas exerceria uma vigilância acurada sobre estas instituições. A religião também estaria sob a vigilância do Estado. Os lotes de terra seriam justa e equitativamente distribuídos entre os 5040 cidadãos proprietários, que, no entanto, não poderiam, por conta própria, vender sua propriedade.

Historicamente, esta nova proposta de Estado nas Leis é um grande avanço em relação ao Estado Ideal da República. As classes sociais já não se distinguem rigidamente. Desaparece a distância entre governantes e governados. O governo se realiza através de leis conhecidas pelos cidadãos. O trabalho está mais valorizado. Dá-se maior atenção à educação popular, também das mulheres. A idéia do semi-comunismo da República , nas Leis se transforma num comunitarismo, voltado para o bem comum de todos os cidadãos, de tal forma que o cidadão considere a sua existência e a finalidade de sua propriedade não de uso exclusivo seu, mas voltadas para o bem comum de todos. O comunismo em tudo, agora é considerado impossível aos mortais (cf. Leis, V, 739).

3. As instituições sociais e políticas de Magnésia

É interessante reparar que Platão localiza sua “Magnésia” numa geografia bem específica. Numa região desabitada de Creta. E em função da geografia desta região a estrutura e organiza. O que permite deduzir que ele admite que o meio influi substancialmente sobre as disposições do homem, e que as leis de cada Estado terão que ser elaboradas, tomando-se em consideração a situação contextual de seu território.

Uma vez conhecendo o tamanho do país, Platão se preocupa com a política populacional. Para Magnésia fixa o número de 5.040 proprietários. Este número deve ser regulado através de imigração e emigração. Há, por parte de Platão, uma preocupação eugênica com a reprodução humana, além de políticas de incentivo ou de diminuição do número de filhos, de acordo com as necessidades populacionais do Estado. Os lotes de terra, atribuídos aos proprietários, deverão ser igualmente produtivos, proporcionando uma vida confortável, embora não luxuosa, aos proprietários e aos membros de sua família. Cada qual terá que cultivar sua terra, mas não lhe é permitido vendê-la, pois será considerada um bem de toda a sociedade.

Em Magnésia também há habitantes que não são cidadãos. São os escravos, os estrangeiros transitórios e os permanentes (os metecos), que poderão permanecer durante algum tempo no país. Esta gente é considerada necessária, pois terá que executar trabalhos não permitidos aos cidadãos. Em Magnésia as mulheres, praticamente, estão equiparadas aos homens, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações educacionais e civis.

Magnésia tem uma rica variedade de encargos, entre eles: a Assembléia, o Conselho, os Magistrados, especialmente os guardiões das leis, a Corte e o Conselho Noturno. Cada um deste encargos possui atribuições específicas. E aqui há uma série de inovações de Platão em relação à administração de Atenas.

No que se refere às leis, é, sem dúvida, uma inovação de Platão, exigir dos legisladores a obrigação de convencer os cidadãos, antes de se criarem novas leis, da necessidade e utilidade de tais leis, e não simplesmente impô-las (cf. Leis 722B5-C2). Platão compara o legislador ao médico, que atende uma pessoa livre. Antes de prescrever um remédio, o médico explica ao cliente a necessidade e o modo de uso deste remédio. E o cliente, consciente das explicações do médico, tomará este remédio para o seu bem. Assim deve ser o legislador, educador do cidadão. Pois uma lei imposta, sem persuasão, nada mais é do que violência (722B ). Aqui, portanto, Platão exige que o cidadão conheça as leis e aprenda a vantagem de observá-las. Exige-se, assim, do Estado que proporcione aos cidadãos um processo educativo. E quem deveria cuidar disto são os próprios legisladores.

4. A Filosofia e a Educação dos cidadãos

Para Platão a filosofia possui uma função social, e é inseparável da política. Consequentemente, para Platão, também a ética é inseparável da política. A partir daí, a primeira função do filósofo é conscientizar os políticos de que o objetivo último da condução da sociedade é levá-la à prática das virtudes como um todo. Entende-se por virtude, em primeiro lugar, a ordenação racional das paixões. Especialmente as paixões espirituais da liberdade e da honra. E tais virtudes se mostram como nobres, isto é, como um fim em si mesmo, e não simplesmente como aspirações à segurança, à prosperidade e ao prestígio. A virtude encontra seu objetivo numa espécie de devoção, contida numa determinada compreensão de deus, que não contempla simplesmente as virtudes políticas, mas visa a vida filosófica, que, sem dúvida, é a mais nobre, a mais livre, e que com mais propriedade pode preencher a vida humana. O político, através da filosofia, deve descobrir a relação entre as virtudes divinas e as virtudes cívicas. Esta é uma necessidade inerente à atividade política, que prestigia a sabedoria, e busca o aperfeiçoamento das almas. Por isto, toda cidade que busca o melhor, ou se orienta para construir este melhor, merece o respeito do filósofo. Mas a cidade que não filosofa não terá lei, nem ordem política capaz de fazer uma aliança com as almas mais nobres.

Alguns comentaristas de Platão chegam ao ponto de concluir que a “sociedade ideal” de Platão é totalmente orgânica, hierárquica, totalitária e finalmente comunista (cf. Popper, A sociedade aberta e seus inimigos). Retira-se esta conclusão, principalmente, de algumas considerações da República. Para se chegar a tal conclusão, toma-se como ponto de partida a idéia platônica de que conhecimento é virtude. O que teria como conseqüência que o mais sábio também é o mais virtuoso. Pois, argumentando contra os sofistas, Platão estaria defendendo a idéia de que existe um bem objetivo supremo, do qual nos poderíamos apoderar através da investigação racional e lógica. Tal opinião teria amplas conseqüências, pois, se conhecimento é virtude, as pessoas seriam hierarquizadas na sociedade de acordo com sua quantidade de conhecimento, em função das necessidades desta mesma sociedade. Desta forma, não existiriam direitos individuais para Platão. Os direitos somente existiriam em função da posição de cada um na sociedade. A sociedade, assim, seria concebida como um sistema de serviços em que cada qual dá e recebe. Nesta sociedade o indivíduo apenas teria valor de acordo com o serviço que prestasse, o que faria com que a sua liberdade não fosse o exercício de seu livre arbítrio, mas a prática de sua função. A partir daí, a justiça, para Platão, seria apenas o reconhecimento do mérito na posição que o indivíduo ocupa na sociedade. Até o filósofo-rei apenas teria o mérito de cumprir sua função dentro da sociedade, organizando-a da melhor forma possível. Consequentemente, a lei nada mais seria do que a regulação da sociedade de acordo com a sabedoria do filósofo. Assim, a sabedoria estaria congelada nas leis. Claro, aqui se deve perguntar, como o filósofo chega a ser filósofo, e os artesãos a serem hábeis em suas profissões? Para isto exige-se a educação. Naturalmente, esta educação, no sistema platônico, deverá estar nas mãos do Estado. O que se constituiria em mais um argumento em favor do totalitarismo platônico.

Se, de fato, é legítimo deduzir da República uma sociedade totalitária, encontramos, no entanto, nas Leis uma mudança de enfoque. No máximo, o que permanece nas Leis é um autoritarismo instrumental. Mas, não será negativo para o sistema platônico admitir que Platão mudou de idéia? Não me parece, pois mudar de idéia não é um mal; mal é não ter idéias para mudar. Assim, lendo com mais atenção As Leis, verificamos que em Magnésia o cidadão não está simplesmente a serviço do Estado, mas o Estado a serviço do cidadão, e de todos os cidadãos (cf. Leis. VI, 769a-771a) . Cai aqui a suspeita popperiana do totalitarismo platônico. Isto não significa que cada qual pode fazer o que quiser, mas que a sociedade não possui uma alma distinta dos homens e das mulheres que a constituem. Ela, em si, é apenas uma entidade terrestre destinada a desaparecer, ao contrário das almas dos que a compõem, que são imortais. Por isto, a única função da sociedade é constituir um ambiente apropriado à construção do homem, de cada homem, para que cada qual forme o seu próprio ser, isto é, possa buscar a “perfeição” de sua alma. A afirmação aristotélica ( inspirada em Platão) de que o homem é um ser social, significa que o homem não se pode completar solitariamente. A sua felicidade depende, portanto, da ordem existente na sociedade em que vive, e da quantidade de sacrifícios que se propõe a despender para o maior bem do todo, não como se a sociedade fosse uma entidade metafísica totalitária, mas em favor de todos os homens e mulheres, que, nesta mesma sociedade, vivem como pessoas, colaborando num mesmo empreendimento. Parece-me que aqui já está latente a idéia de que cada sociedade possui uma estrutura e um governo que ela merece. Depende dos cidadãos o nível e a forma política que lhe é própria. Assim, se algum Governo é adequado ou não, isto depende dos cidadãos que o formam, e não da natureza humana otimística ou pessimisticamente definida.

Conclusão

O objetivo desta minha comunicação não era nem fazer uma análise completa da teoria platônica do Estado, nem examinar a vasta bibliografia sobre a obra de Platão. Por isto, na bibliografia, apenas aponto algumas obras que me estimularam a ler sob o enfoque social A República e As Leis. Voltando a Platão, quero mostrar que os ensinamentos deste filósofo de todos os tempos ainda nos podem estimular a analisarmos a realidade , buscando caminhos para a solução dos problemas da vida em sociedade. Não pretendo propor que se siga Platão, que se adotem simplesmente os seus ensinamentos, nem a sua legislação. Evidentemente, nenhum filósofo hoje terá simpatias pela escravidão, pela pena de morte, pelo infanticídio, pelos castigos físicos, por uma organização social em castas, etc. Mas todos estamos diante do problema das penas para com os malfeitores. Que penas aplicar? Como viver solidariamente na sociedade? Como reconhecer o mérito das pessoas que promovem o bem comum? Como instituir a justiça? Como evitar a fome? Como levar as pessoas a trabalhar e viver dignamente? A quem estamos educando, e como? Como conseguir que nasça e cresça uma geração saudável? Tudo isto são problemas que aparecem nos escritos de Platão. E de forma especial deveríamos tomar em consideração as últimas reflexões de Platão sobre o Estado, e sua administração, que deixou em seu diálogo das Leis. A idéia de Estado que, geralmente, é proposta nas análises dos ideais de Platão se retira não raras vezes de forma exclusiva da República. Muitos estudiosos esquecem As Leis. E isto, não poucas vezes, faz com que consideremos Platão simplesmente como um utopista. A verdade é que a proposta de Estado nas Leis nos dá uma idéia bastante diferente do modelo platônico de Estado. Por isto, se a minha reflexão conseguir motivar a alguém a se aprofundar no livro das Leis, julgo que realizei o objetivo desta minha volta a Platão.

Referências bibliográficas:

- PLATÃO. As Leis. São Paulo. Edições Profissionais Ltda, 1999.

- _______. A República. São Paulo. Editora Martin Claret, 2001.

- JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes, 1986.

- POPPER, Karl. A Sociedade aberta e seus Inimigos. São Paulo/Belo Horizonte. USP/Itatiaia, 1974.

Inácio Strieder é professor de filosofia- Recife-PE.