Não somos plurais
NÃO SOMOS PLURAIS
Da forma simplista como a questão do pluralismo, nas sociedades contemporâneas, está sendo apresentada – devemos ser plurais - só há uma maneira, também simplista, de responder à assertiva: não somos nem devemos ser plurais.
Devemos, sim, é aperfeiçoar a convivência pluralista solidária, atitude coletiva ideal para o pleno desabrochar da natureza humana, de todos os cidadãos em todas as sociedades.
Só podemos viver a pluralidade, numa sociedade democrática, se nos apresentarmos para a convivência com nossa individualidade intacta. Cada pessoa é um ser individuo de natureza racional, livre e social. Assim, cada pessoa participa da incontornável necessidade do viver humano em sociedade. Com suas individualidades preservadas cidadãos e cidadãs contribuem para o enriquecimento da liberdade e do saber, compartilham suas experiências, suas formas de perceber e compreender o mundo que os cerca. Desta forma surgem as naturais divergências, os debates esclarecedores e estimulantes do progresso e do aperfeiçoamento do viver democrático.
O contrário, todos serem plurais, além da monotonia opressora do pensamento único, característica das sociedades totalitárias, cessará o saudável e necessário debate entre idéias opostas, atitude que deve presidir as relações sociais livres, na procura das formas mais justas para a promoção do bem comum.
Só posso admitir a pluralidade, palavra usada atualmente sem muita responsabilidade e reflexão, como forma de respeitosa convivência com as formas de pensar e de viver dos demais cidadãos. Isto não significa aceitar tudo o que afirmam e os seus estilos de vida. Os erros devem ser denunciados como forma, inclusive, de colaborar na procura e na promoção da verdade, que a todos interessa. Parece que a ânsia de liberdade, sem reflexão sobre o sentido da existência humana, está levando as pessoas a aceitarem tudo o que ouvem, lêem ou vêem, como o ideal democrático por excelência, praticamente excluindo a critica racional, o debate fraterno, a pratica pacífica e solidaria da vida em sociedade.
É de Voltaire, (sec. XVIII), a lúcida e definitiva sentença: “não concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.”.
As palavras e os conceitos que elas encerram, os gestos e estilos de comportamento são mecanismos de comunicação entre os cidadãos. Respeitá-los não significa concordância. Discordar e debater, argumentando, não é discriminação: - é a forma correta do viver o pluralismo na sua plenitude. É o instrumento do progresso e do aprimoramento do Humanismo – o reconhecimento conseqüente da centralidade da pessoa humana no processo histórico.
Certamente escrevo na perspectiva da tradição filosófica do cristianismo, que possibilitou o surgimento, expansão e desenvolvimento da civilização ocidental, hoje progressivamente dominante em todo o planeta. A ciência, a tecnologia, o direito positivo dos povos, o estado democrático de direito, a liberdade da criação artística e tantas outras conquistas do Humanismo são, historicamente, inquestionáveis desdobramentos da pregação cristã. Com a concordância de muitos outros autores, Fernand Braudel, notável historiador francês, ensina, na sua Gramática das Civilizações: “O cristianismo ocidental permanece como o componente maior do pensamento europeu, mesmo do pensamento racionalista que se constituiu contra ele.... Ateu, um europeu é prisioneiro de uma ética, de comportamentos psíquicos, fortemente enraizados numa tradição cristã....É um sangue cristão.....sem ter, entretanto, conservado a fé”. Não devemos esquecer este fato e reconhecer que o Ocidente, as Américas e agora, pouco a pouco, o mundo inteiro, se organiza principalmente em torno daquilo que foi gestado, nas suas origens, pelo pensamento europeu, pelo cristianismo.
Não crer, ser ateu, agnóstico, acreditar em puras forças e energias cósmicas, tudo bem, é a moda... Mas que as raízes que propiciaram e sustentam o ambiente intelectual que possibilitou quase tudo o que aí existe são de fonte e inspiração cristã, isto é uma realidade histórica que não se pode negar. Por isso é que quando queremos superar uma crise global, como a que presentemente aflige a humanidade, é preciso recuperar aquilo que um dia possibilitou a necessária unidade de esperanças e de ações coletivas – os valores cristãos na procura da verdade, da liberdade, da caridade, da justiça, do desenvolvimento integral e da paz.
Talvez esta necessidade inconscientemente sentida pelos povos, esta nostalgia de uma unidade de pensamento filosófico e político, esteja conduzindo a humanidade a esta apressada atitude de aceitação de tudo o que é proposto. Talvez o medo de ser desmerecido intelectualmente, por uma acovardada e falsa compreensão da modernidade, esteja conduzindo as pessoas a não se oporem aos erros morais que estão proliferando em nosso meio. Age-se como se a atitude intelectual de aceitação de tudo o que é apresentado seja a mais moderna e a mais justa pratica humana. Esquecem-se de que a “unidade na diversidade” é, esta sim, a posição correta, adequada à promoção da dignidade essencial de todos os seres humanos, como ensinou a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Concílio Vaticano II, 1965, nº 74,75).
As esperanças e os sonhos, cultivados por gerações, de uma sociedade justa, livre e solidaria, são os fundamentos da dinâmica da história, aonde tudo isso venha a ocorrer, fruto da convivência plural de idéias e ações reguladas por leis legitimas e justas, elaboradas no ambiente fecundo de uma sociedade livre e democrática, na permanente procura da verdade.
Eurico de Andrade Neves Borba
Escritor, ex Professor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, reside em Ana Rech.