OS ANJOS DE CANUDOS

A Ordem-do-dia em 05 de outubro de 1897 determinava que a sorte de Canudos seria esta: "Não fica pedra sobre pedra, um silêncio sepulcral há de cobrir os imensos vazios, e fazer esquecer para sempre a vergonha de tudo o que aqui aconteceu". Após passado um centenário do massacre de Canudos constata-se que a "profecia" do comandante-em-chefe da vitoriosa 4a. Expedição contra Canudos resultou pelo avesso. Hoje a verdade sobre Canudos está sendo resgatada. Através de pesquisas históricas, filmes e livros retrata-se Canudos menos com palavras de Euclides da Cunha, e mais de acordo com a descrição de Honório Vila Nova, que afirma: "Grande era a Canudos de meu tempo: quem tinha roça tratava da roça, na beira do rio; quem tinha gado, tratava do gado; quem tinha mulher e filhos, tratava da mulher e dos filhos; quem gostava de rezar ia rezar; de tudo se tratava porque a ninguém pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo peregrino".

Com estas palavras de Vila Nova o historiador Eduardo Hoornaert abre o seu livro "Os Anjos de Canudos" (Vozes/97).

É gratificante constatar o esforço atual em rever a historiografia dos nossos 500 anos. A história que nos foi ensinada, em quase sua totalidade, foi a versão dos vencedores. E já os antigos romanos proclamavam: "Ai dos vencidos!". Os vencidos não eram apenas massacrados ou escravizados, mas também a sua memória era profanada e deturpada. O filósofo Nietzsche dizia que os historiadores, muitas vezes, se assemelhavam às rãs dos banhados, que somente olhavam para as alturas, à espera dos insetos. Esqueciam o charco sobre o qual assentavam. Assim os historiadores apenas se interessavam pelo que acontecera distante deles, relatando os grandes feitos, os atos heróicos, as glórias dos nobres, glorificando os vitoriosos. E isto não poderia ser a "verdadeira história". Pois a verdadeira história exigia que também se olhasse para baixo, para os pequenos, para os vencidos, para aquilo que acontece próximo a nós. Somente assim teríamos uma versão histórica mais verdadeira.

A versão oficial de Canudos encontramos em Euclides da Cunha e demais historiadores tradicionais. Mas Euclides da Cunha era da "Força". E, onde está a história de quem era do "Conselheiro"?

Na história oficial as forças legais são legitimadas, pois, segundo a versão desta história elas enfrentaram fanáticos, malaventurados, jagunços, cangaceiros, sertanejos boçais. Mas será que esta é a verdadeira história de Canudos? Manuel Benício, jornalista crítico que acompanhou até quase ao final a 4a. Expedição, escreveu, na época, que em Canudos tudo era "normalmente sertanejo". E este "normal" era muito diferente do que narra a historiografia oficial. Em vez de somente fanatismos e banditismos, no coração dos adeptos do Bento Conselheiro palpitava o desejo por um cristianismo das origens. Um cristianismo simples, sem pompa e sem a ortodoxia institucional, em que o respeito pelo leigo conselheiro abria caminho para uma vida comunitária fraternal. Diante desta "igreja" do povo-leigo a Instituição eclesial da época se dispôs a endossar as teses das forças de repressão.

Pergunto-me eu, que perigo poderia representar para a República e para a Igreja uma pobre comunidade de sertanejos desamparados, tidos como monarquistas? No meu entender, no máximo poderiam intranquilizar a má consciência de uma elite que sentia remorsos por ter usurpado o poder.

Pelo que tudo indica, a partir de agora, Canudos já não será o símbolo do rumor de demônios, de malaventurados, de fanáticos, jagunços, cangaceiros... mas o símbolo do rumor de um povo sertanejo que aspira por tempos melhores, por uma terra sem males, e sem a "Força" opressora e repressora das elites escravizantes e do coronelismo político. Oxalá mais historiadores assimilem a advertência nietzscheana e pesquisem também a versão dos vencidos!

Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife/PE