“Saidinha de banco”: um problema de segurança pública

Lúcio Alves de Barros*

Um fenômeno que se tornou ostensivo e normal em tempos de debate acirrado sobre a segurança pública é o da “saidinha de banco”. Aparentemente, tornou-se normal não pelos constantes acontecimentos (mais do que previsível e esperado), mas pelo nome que recebeu carinhosamente das autoridades e da mídia. A “saidinha de banco” trata-se, na verdade, de um golpe criminoso, covarde e violento cometido por um recalcitrante racionalmente orientado para o roubo da pessoa inocente e (in) feliz que preferiu sacar uma respeitável quantia de dinheiro no banco. Na capital de Minas Gerais, de acordo com os dados veiculados pela Polícia Militar são, em média, 70 ocorrências por mês (Jornal O Tempo, 06/05/2010).

Tudo indica que a prática se tornou um problema – o qual, distante de solução – que se arrasta e piora a cada início de mês. Não faz muito tempo a economista Patrícia Martins Cardoso, de somente 48 anos, foi covardemente assassinada com um tiro nas costas na frente do pai, um senhor de 90 anos, a quem costumeiramente acompanhava. Ele havia retirado R$ 4.000 em bancos da região central da capital.

A questão é complexa e séria: em Contagem uma lei tenta colocar ordem na casa e em Betim e diversas cidades de Minas, as autoridades começaram a discutir a possibilidade de proibir o uso do celular no interior das agências e obrigar os bancos a instalar biombos nos caixas para que os valores sacados não sejam vistos por outros usuários. Tais ideias tomaram as mentes brilhantes das autoridades porque acham que alguém no interior da instituição bancária tem “armado campana” e vigiado as possíveis vítimas que vão retirar uma significativa quantia em dinheiro. Provavelmente, esta seja uma das leituras possíveis devido a forte percepção dos acontecimentos da famigerada “saidinha”, mas não pensar em outras possibilidades é no mínimo absurdo e leviano.

É oportuno lembrar que qualquer ser humano tem o direito de retirar o seu dinheiro na hora, no dia, na semana, o quanto e onde quiser. Os executivos de polícia, que andam pelas faculdades fazendo cursos de criminologia, lançam mão da “teoria da oportunidade” no intuito de justificar e responder com rapidez a problemática. Neste caso, a teoria é pródiga na explicação: “não deseja ser roubado? Então não retire tanto dinheiro e não dê oportunidade para o ladrão”. Ótima explicação para o cansativo e perigoso discurso que tenta criminalizar e culpabilizar a vítima. Uma lástima, até porque, quando se vai ao banco retirar “o seu dinheiro”, é tautologia insistir na ideia de que estamos nos referindo a indivíduos livres e que podem, pelo menos em teoria, fazer o que bem entender com suas notas. O que não podemos perder de vista é o que pode estar por trás da “saidinha”.

Ao utilizar o discurso de culpabilização da vítima escondemos através da linguagem o que chamo de “teoria das obrigações”. É uma teoria simples: trata-se de ações que, no campo da segurança pública, delega aos funcionários da segurança objetiva a função de estar sempre atentos aos acontecimentos delituosos. Esta é a esfera de ação da polícia militar. Longe da ironia, qualquer estudante de criminologia, policial, administrador de empresa, sociólogo e bancário sabem que, no início de cada mês existe um grande número de pessoas pagando suas contas e movimentando certas quantias em dinheiro. Também já é de conhecimento dos mais preocupados que no início de cada mês além de aumentar o número de roubos à mão armada aumenta o número de "saidinhas". A questão a ser colocada é de duas uma, (1) ou a polícia está patinando e ainda engatinhando no entendimento do fenômeno carinhosamente apelidado de “saidinha de banco”, optando no caso por atuar como a “polícia do depois”, ou (2) não sabe e sequer possui uma estratégia para diminuir ou prender os recalcitrantes que vem se reciclado e trabalhado a contento com o apoio de motos, carros e olheiros de toda ordem.

O fato é que a saidinha tornou-se norma ou prática cotidiana de início de mês e não deixa de revelar uma curiosa economia do crime. É no começo de cada período mensal que o recalcitrante sabe das possibilidades de capitalização. Obviamente a polícia tem a ciência disso e deve possuir não poucos mapas geoprocessados e ocorrências que podem indicar algum padrão ou conduta. Sabe-se que alguns executivos da polícia têm se reunido com agentes bancários e membros do poder público e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Reuniões e comissões, entretanto, só funcionam bem em escolas de samba e, tal como já disse o educador Paulo Freire, “da fala à ação a distância é enorme”. Não distante deste debate o que não é aceitável é a arte de culpabilizar a vítima em nome de uma teoria e um fenômeno em descontrole, haja vista que - por natureza – a vítima não navega nas relações de sociabilidade dos recalcitrantes. Aliás, ela não tem nem a obrigação ou dever de ficar atenta ao “meliante” que se aproxima, pois – pelo que se sabe – paga-se policiais militares e civis para isso. A segurança é um bem e, longe do mercado, é dever e obrigação do Estado. Acrescenta-se a isso a responsabilidade dos bancos que poderiam, além de ter a ciência dos possíveis suspeitos, identificar e persuadir aqueles que andam a perambular entre as filas do caixa.

Existe outra possibilidade: toda vez que alguém for sacar um bom dinheiro no caixa e deseja sair com o seu capital (por direito) pelas ruas aposte na contratação de empresas privadas de segurança ou alugue um carro forte. A ação é custosa e provavelmente não compensaria pelo valor retirado. De toda forma, é preciso que se faça alguma coisa. Não vejo outra maneira que não seja uma ação oriunda da própria polícia. Distribuir panfletos explicativos, dicas e conselhos, dar entrevistas em jornais e na TV, reunir redes de funcionários ou de usuários “protegidos”, colocar câmeras no interior e fora das agências podem até surtir algum efeito, principalmente no que toca à produção do medo e da insegurança subjetiva.

Contudo, o mais conveniente é a polícia (tanto a militar como a civil) se fazer presente como tal e seguir à risca a função constitucional de manutenção da paz e da ordem. Não é possível que nenhum executivo da polícia, que tenha pelo menos um pouco de poder de agenda, não tenha pensado em ações de investigação, análises de fatos repetitivos, padrões de conduta, reunião e cruzamento de informações geoprocessadas, identificação de potenciais quadrilhas ou mesmo a possibilidade da ação do policiamento civil à paisana. As ações são poucas e singelas e estou ciente de que o policiamento é mais complexo do que isso. De qualquer forma, os dados disponíveis e os acontecimentos que se repetem nas cidades revelam que empreendimentos mais contundentes devem ser levados a efeito. A polícia, em suas ações cotidianas é - por definição - a “polícia do depois”. Ela sempre chega na hora, no tempo e no momento em que se tem uma vítima. Todavia, este tempo é o dela e não o da pessoa vitimizada, a qual muitas vezes envergonhada, ainda pensa em não acionar a polícia. No caso do golpe da “saidinha de banco” a ideia é que a polícia não seja a do “depois”, tampouco a que chega após a mídia ou que fique somente na ocorrência de cada dia. O anseio é que a polícia seja pública e desta esfera faça parte. Tudo para que ela se encontre nos locais nos quais podem acontecer algo em algum momento. Que ela esteja presente antes do meliante, seja para espantá-lo, seja para - pelo menos - como era a antiga dupla “Cosme e Damião”, para nos oferecer a segurança subjetiva do bom dia, do boa tarde e da boa noite.

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* Professor e organizador da obra “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.