A TROCA DE PODER EM UFIPER

Geralmente o processo da troca de poder entre os homens é traumático. Muitas vezes deixa mortos e feridos. Por isto, desde a Antiguidade, os sábios se preocupam em propor caminhos menos penosos para os rituais da troca de poder nas comunidades: caminhos democráticos, eleições, poder hereditário, hierarquia, nomeações, imposição das mãos, etc... Todos estes rituais, segundo a sabedoria dos antigos, para serem humanos, deveriam basear-se primordialmente em princípios da razão. Acontece, porém, que, apesar das propostas dos filósofos de tantos séculos, muitas vezes, a troca de poder está acompanhada de atitudes irracionais, para não dizer de golpes baixos e sujeira. Por isto, pesquisadores da etologia animal se lembraram de uma ideia muito antiga, em que se dizia que os homens aprenderam as suas primeiras artes observando os animais. Por exemplo, teriam aprendido a fiar das aranhas, a construir casas das andorinhas, a plantar de algumas aves que enterram sementes, que depois crescem. De acordo com esta ideia, os etólogos se puseram a pesquisar o processo da troca de poder em alguns grupos de animais, como os lobos, os antropóides. Talvez os homens pudessem aprender alguma coisa destes irracionais, em relação aos rituais na troca de poder. De fato, os cientistas descobriram coisas muito interessantes no reino animal.

Como não pretendo, neste texto, me alongar muito a respeito destas descobertas no mundo animal, apenas apresentarei algumas observações feitas entre grupos de macacos, e tentarei estabelecer algumas relações com os rituais na troca de poder em grupos humanos. Mas, para que a leitura de minhas reflexões e relações não seja monótona, situarei minha crônica em um tempo e espaço imaginário, apelando para o gênero literário das lendas. Por isto, convido o leitor para se situar também neste nível do imaginário.

Lendas muito antigas, e pouco conhecidas, falam de um povo que habitava as terras de Ufiper. Nestas terras em que, já há muito tempo, dominavam as amazonas, haviam se formado algumas tribos, como os ceducos, os cetecos, os cefixes, os medecos. Estes grupos eram considerados elites em relação ao povo em geral. O povo era muito pobre e pouco desenvolvido. Os crimes aconteciam mais por ignorância do que por má índole. Nestas mesmas terras de Ufiper viviam também algumas famílias de macacos, como os pavans, os chimpanzés, os gorilas, e outros.

Segundo a lenda, as tribos de Ufiper, há muitos anos, se regiam por leis, segundo as quais deveriam se governar. Mas os tempos em que estas leis haviam sido convencionadas eram ditatoriais, e agora se buscavam práticas democráticas, como na maioria dos povos civilizados. Como as leis eram umas e as exigências da vida outras, os que exerciam o poder recorriam às leis apenas quando lhes interessassem; e os que queriam a democracia não a praticavam em sua vida. E, neste jogo sujo, quem vencia era o poder, e não a razão. Neste entrevero, em Ufiper não havia mortos, mas muitos feridos e mutilados.

Frente a esta situação lamentável, que envolvia as elites dos ufiperenses, alguns membros mais recentes da comunidade se conscientizaram da necessidade de mudanças, pois Ufiper começava a ser malvista, já que em suas terras ainda continuavam a vigorar práticas de tempos ditatoriais já ultrapassadas. Estes sábios, em Ufiper, que queriam salvar a sua dignidade, trabalhando nestas terras, lembraram-se das lendas antigas em que se diz que os homens aprenderam as suas primeiras artes dos animais. Estes ufiperenses lembraram-se, então, dos macacos em suas terras, e observaram que a troca de poder em seus bandos resultava finalmente na harmonia de todos e no respeito a seus líderes. Maravilharam-se principalmente com o ritual da troca de poder entre os macacos pavans. Como cientistas, verificaram que entre os pavans, quando chega a época da troca de poder, o bando entra em efervescência. Os machos disponíveis para o cargo começam a mostrar as suas habilidades e atributos, inclusive os “atributos roxos”. As fêmeas fazem as fofocas. Algumas se aproximam deste ou daquele candidato. Neste vai-e-vem de fofocas, cochichos e ostentação de atributos, aos poucos se sobressai o macaco mais hábil. Uma vez identificado este, todos os membros do bando se aproximam dele, e lhe dão um toque e um cheirinho num lugar um pouco acima da coxa. É o gesto da legitimação e da submissão ao novo líder. O “discurso” de posse consiste num grunhido forte do novo líder, e a harmonia do bando está restabelecida. O processo de escolha é limpo, transparente e sempre identifica o melhor líder. As articulações acontecem no território dos pavans, e não aparecem macacos estranhos para impor seus rituais. Assim, durante milhões de anos, os pavans crescem e florescem.

Os sábios estavam bastante escandalizados, pois em Ufiper ficava-se longe da prática instintiva dos macacos na troca de poder, e muito menos se usava a razão neste ritual. O conflito estava mais caracterizado entre os ceducos e os cefixes. Entre os cefixes os atritos haviam engrossado. O processo carecia de coerência, lealdade e dignidade. Por isto, as lendárias amazonas entraram em cena. Assim alguns notáveis entre os cefixes foram convocados a comparecerem às terras maranhenses. Como não havia notáveis suficientes, o morubixaba-mór de Ufiper nomeou alguns araques para completar o quadro. Houve um pacto de 11. Qualquer “Judas” deveria ser excluído. Mas como “os onze” não eram a maioria no conselho dos cefixes, dois independentes deveriam ser convencidos para compactuar. Mas estes não se dobraram, pois preferiram conservar a dignidade. Mesmo assim, foi escolhido o provável líder dos cefixes. Como já relatei antes, a lenda diz que, em Ufiper, sujeira por sujeira, quem vencia finalmente era o poder e não a razão.

Aqui acaba a lenda. Por isto não se sabe como os cefixes reagiram frente ao novo líder, se muitos foram dar o toque e o cheirinho na hora da posse, em analogia ao costume dos macacos. A lenda apenas acena para o fato de que as atitudes dos que exerciam o poder em Ufiper chegaram rapidamente ao morubixaba-mór das terras dos “colloridos”, e pairava a ameaça de que, se as mesmas práticas de golpes baixos continuassem, Ufiper passaria de 5º para 10º lugar em relação à unidade monetária das Ufes. Pois os “colloridos”, embora também não tenham aprendido muito dos macacos, contudo poderiam aproveitar as gafes dos outros para legitimarem as suas sujeiras, e assumirem o poder.

Lendas, naturalmente, são lendas, e não podemos estabelecer relações diretas com o real. Mas, certamente, quem não quiser perder a sua dignidade em questões de poder, poderá aprender muito da lenda de UFIPER, e da troca de poder entre animais e homens.

Inácio Strieder é professor de filosofia – Recife/PE