VIEIRA E O BRASIL ENFERMO

Da forma como, muitas vezes, são dadas as notícias, e feitos os comentários sobre o Brasil, fica-se com a impressão de que a corrupção, o descalabro moral e a falta de vergonha é fato recente em nosso país. Relendo alguns sermões do Pe. Antônio Vieira, defrontei-me com o “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, proferido em 1641 na Bahia na presença do Marquês de Montalvão, que acabara de chegar ao Brasil como Vice-rei. Com a vinda desse Vice-rei novas esperanças se acenderam, e Vieira aproveita a ocasião para caracterizar a “enfermidade” do Brasil. Grande parte do sermão analisa o descalabro dos valores éticos em terras brasílicas: a corrupção, a deslealdade, o abuso de poder, a covardia, os homicídios, as traições, os roubos, a falta de vergonha dos políticos, e tantas outras mazelas de que são capazes os homens. Frente a tudo isto, Vieira declara que o Brasil está enfermo, e espera soluções do político adventício.

Este sermão de Vieira, de 1641, nos mostra que a “enfermidade” do Brasil de hoje é um mal de mais de três séculos e meio. Por isto, julgamos que não existe remédio que cure o Brasil de um dia para outro. Nem acreditamos no sucesso de campanhas moralizantes, ou de qualquer outra categoria, que durem um dia, uma semana, um mês ou um ano; nem acreditamos que algo se cure simplesmente com ameaças de maior repressão policial. É uma questão de mentalidade. E os desvios de mentalidade se corrigem com remédios de médio e longo prazos: educação, cidadania, amor ao trabalho, justiça social, etc...

Em analogia com a “enfermidade” do Brasil de hoje, alguns dos remédios receitados por Vieira são muito sugestivos. Claro, não concordamos com todos, pois a pena de morte, recomendada por Vieira para certos crimes, não seria solução para o Brasil de hoje. Mas, fora este “remédio”, a receita de Vieira poderia também hoje trazer a saúde para muitos sintomas do nosso Brasil enfermo.

Para Vieira o Brasil, em muitas ocasiões, teve o remédio a mãos, mas nunca o alcançou, pois sempre chegou um dia depois. E quando os gemidos do enfermo chegavam aos ouvidos de quem o deveria remediar, as vozes do poder venciam os clamores da razão. A maior causa dos males do Brasil, durante muito tempo, foi a sua impossibilidade de falar. Os enfermos, muitas vezes, tentam falar, mas não conseguem. Assim foi com o Brasil. A violência (a censura) afogava as palavras e os gemidos na garganta do doente. E o remédio adequado deixou de ser aplicado.

Hoje diriamos que a liberdade de expressão, a imprensa livre e imparcial, a denúncia da corrupção, dos crimes, e a consciência crítica dos cidadãos são o primeiro passo para se descobrir o remédio. Uma vez havendo intérpretes adequados da enfermidade, a doença do Brasil pode ser escancarada. E então haverá esperança de cura. Já para Vieira a enfermidade do Brasil era a falta da devida justiça. Justiça punitiva, que castiga maus; e justiça distributiva, que premia bons.

Prêmio e castigo são os pólos em que se revolve e sustenta a conservação de qualquer Governo. E porque ambos faltaram sempre ao Brasil, por isto continua arruinado. Sem justiça não há governo, nem estado, nem município, nem mesmo quadrilha de ladrões que possa conservar-se. Na medida em que se quebra a inteireza da justiça, e não se respeita a igualdade dos cidadãos perante a lei, a sociedade se corrompe, as forças nacionais enfraquecem, desmaiam os brios, e o País pagará tributos servis a outros povos.

“Por falta de justiça chegamos ao miserável estado em que nos vemos. Houve roubos, houve homicídios, houve desobediências, houve outros delitos, muitos e enormes..., mas nunca houve castigo, nunca houve rigor que fizesse exemplo. Ah! triste e miserável Brasil... Não é miserável a república onde há delitos, senão onde falta castigo deles”.

Realmente, os clamores de Vieira ainda estão à base de muitos dos sintomas do “Brasil enfermo” de hoje. Muitas vezes não há coragem de falar. Em vez de denunciar, por exemplo, os que se locupletaram fraudulentamente com a construção de Brasília, só há louvores para eles. Por que nas celebrações dos 50 anos de Brasília, os documentários apenas mostram a aventura grandiosa da construção de Brasília, e não retratam também a enorme corrupção na construção desta cidade? Além disto, quando se recorda a enorme dívida externa do Brasil, por que não se identifica quem foram os verdadeiros responsáveis por esta dívida do País, e do desvio e evasão de muitos deste dinheiros. A impressão é que a República faculta, justamente a estes, o livre trânsito em todas as instâncias do poder; anistia-se criminosos e torturadores, semelhantes aos criminosos nazistas, que todos consideram escandaloso que não estejam penando por seus crimes. O prêmio e o castigo em Vieira não se deve entender apenas como concessão de medalhas ou aprisionamento. A questão é muito mais profunda. O verdadeiro prêmio para o cidadão é a faculdade de conseguir uma vida melhor quando contribui para o bem da coletividade, trabalhando honestamente, pagando os seus impostos, etc... Mas, quem no Brasil de hoje pode esperar por dias melhores quando vive do salário de seu trabalho honesto, e busca cumprir as leis? A impressão é que somente consegue melhorar de vida, ao menos no contexto urbano, quem explora o seu concidadão com preços abusivos, falcatruas, sonegação e mil e uma outras desonestidades. Permite-se uma agiotagem intolerável aos cartões de crédito, com juros mensais que ultrapassam o absurdo de 15%! E a impressão que fica é que, justamente, os malfeitores da sociedade são os premiados. Tudo isto é um dos terríveis sintomas de nossa “enfermidade”.

O verdadeiro castigo para os maus cidadãos não é simplesmente a cadeia. O Brasil poderia multiplicar mil vezes suas prisões e, mesmo assim, não se curaria de sua “enfermidade”, caso não encontre fórmula para inibir a possibilidade de ascensão social pela desonestidade, pelo crime, pelo engodo, ou por muitos outros delitos. De nada adianta multiplicar simplesmente as prisões.

Não sei se o sermão de Vieira, frente ao Vice-rei Montalvão, produziu adequada comoção. O certo é que se Vieira hoje, 359 anos depois, aparecesse entre nós, provavelmente carregaria ainda mais as tintas, escandalizado porque o Brasil de hoje continua “enfermo” do mesmo jeito. Tenho a impressão de que o remédio apenas virá quando a razão começar a falar mais alto do que os meandros escusos dos poderes que nos conduzem.

Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife-PE.