Uma visão do auto-denominado cristão Reinaldo Azevedo sobre o Padre Júlio Lancelotti, há 17 anos

O Cavaleiro das Trevas

Por Reinaldo Azevedo

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Padre Júlio Lancellotti quer impedir a Prefeitura de São Paulo de levar cidadania tanto aos miseráveis que moram nas ruas como às vítimas da ação de marginais.

Peço licença aos leitores que não são da cidade de São Paulo para tratar de um assunto local, embora o tema seja nacional e, se quiserem saber, mundial. Acompanhem: numa das passagens subterrâneas da Avenida Paulista, que dá acesso à Avenida Doutor Arnaldo, um vão livre acabou se transformando em moradia. Pior do que isso: marginais se misturaram aos moradores e passaram, nos horários de pico ou nos engarrafamentos, a assaltar e a ameaçar motoristas, especialmente mulheres, particularmente quando acompanhadas de crianças. A Prefeitura de São Paulo dispõe de albergues para abrigar as pessoas que não têm onde morar.

O prefeito José Serra mandou construir rampas nestes vãos, com superfície áspera, para coibir a ação dos criminosos. O padre Júlio Lancellotti, de uma tal Pastoral do Povo da Rua, não gostou. Acusa o prefeito e o secretário de Serviços, Andrea Matarazzo, de prática “higienista”. Lancellotti, tradicional aliado do PT, transformou-se numa espécie de Cavaleiro das Trevas das políticas públicas. Há uma luta surda na cidade entre ele e a boa governança. A miséria é a Guinevere deste Lancellotti — com dois eles, dois tês, mas sem nenhum limite ou juízo.

Com a fúria dos cavaleiros, Lancellotti quer a sua miséria intocada. E fala, claro, em nome de suas particularíssimas noções de justiça. Serra e Matarazzo (também subprefeito da Sé) são seus alvos prediletos desde que teve início a reurbanização de uma área central da cidade antes conhecida como “Cracolândia”. O nome já define o que havia ali. Tratava-se de um Vale dos Caídos: uma área livre para o consumo e o tráfico de crack e outras drogas, com todos os males associados: prostituição, inclusive a infantil, contrabando, moradias sub-humanas e a inesgotável variedade de exploração da miséria.

Lancellotti, fundador da Teologia do Absurdo — uma versão ainda menos pia da Teologia da Libertação —, jamais criticou a administração Marta Suplicy, que herdou, de fato, um quadro calamitoso, mas permitiu que ele se extremasse barbaramente. As cenas dantescas de adolescentes e crianças largadas ao léu, sem qualquer cuidado ou intervenção do serviço público, serviam de ilustração e exemplo do tipo de caridade que passou a se exercer ali: em vez de coibir, ela passou a alimentar o vício e a estimular uma cadeia econômica cujo capital primitivo era a droga. A Terra Prometida da miséria, da degradação e da humilhação era o bantustão de Lancellotti. O “Povo de Rua” tinha de seu a sarjeta. E o céu por testemunha. Além do silêncio cúmplice, criminoso, prevaricador, do Poder Público.

Serra ousou pôr fim à “Cracolândia”. Hotéis e bares foram fechados pela Vigilância Sanitária, traficantes foram presos, numa ação conjunta com a Secretaria de Segurança Publica do Estado, prédios foram interditados e lacrados, outros foram recuperados. Um ousado plano de estímulos fiscais deve levar empresas para a região, gerando empregos e atraindo o comércio formal. Crianças foram encaminhadas à assistência; adultos sem moradia, aos albergues.

O cavaleiro Lancelotti não gostou de ver a sua Guinevere restituída ao Rei Arthur do Estado de Direito. A passou a brandir a sua espada de fogo e a sua língua flamejante contra a Prefeitura. O xiita dos Povos de Rua, o aiatolá dos miseráveis, decretou a sua fatwa: “Higienismo!”, grita ele, com sua teologia-ideologia perturbada. Pretende, assim, emprestar um viés fascista àquilo que corresponde, em suma, ao cumprimento de uma obrigação do Estado, de que a Prefeitura é uma das esferas. Em sentido literal, não corrompido pelas caridades que matam, houve, de fato, na Cracolândia, uma prática “higienista”: tratava-se de levar condições sanitárias adequadas ao centro da cidade. Tratava-se restituir direitos não só aos moradores da região como às vítimas das drogas.

Gigolôs da miséria

Há coisas que os leitores desconhecem, estou certo. E que precisam ser debatidas, trazidas à luz. Para meu enorme espanto pessoal, descobri que algumas das entidades que criam empecilhos para levar civilidade a áreas tomadas pelo tráfico dedicam-se, por exemplo, a distribuir kits aos drogados, com agulha, seringa, soro e, pasmem!, até cachimbinho de crack.

Vocês entenderam direitinho. Assim como se distribuem camisinhas a quem quer fazer sexo com proteção, distribuem-se cachimbos e kits para facilitar o consumo de droga. A distribuição de preservativos, vá lá, embora também atue como estímulo à prática do sexo irresponsável (refiro-me a uma responsabilidade não relacionada à saúde), com efeito, evita a transmissão de DSTs. Não se constitui num facilitador da ilegalidade, do crime e até do suicídio.

Sob o pretexto de que os consumidores de droga não devem partilhar objetos, pessoas ridículas se dedicam à tarefa ridícula de abraçar a tese ridícula de que estão salvando vidas ao viabilizar as melhores condições para o consumo de droga. É um disparate. Querem que a ação faça parte da chamada política de redução de danos, que seria mais eficaz do que a repressão. Um folheto com instrução usa e abusa da gíria dos próprios drogados sob o pretexto de fazer comunicação eficaz. Eu sempre soube, desde criancinha, no que daria ainda a tal “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire. Deu nisso aí.

O fato é que essa visão torta, equivocada, da política de redução de danos, na prática, promove e facilita o vício. Já vi um desses kits: trata-se de um verdadeiro fetiche, a que não falta nem o cuidado com o design. Para o miserável, é um verdadeiro objeto do desejo. Ai da Prefeitura se ousar mesmo debater com essa gente. São as ONGs, verdadeiras donas de sua clientela. As tais “organizações não-governamentais” confiscaram do Estado e do governo o espaço público, embora, freqüentemente, vivam de verbas oficiais. Há algo de profundamente errado nestes “parceiros” do bem. Como podem reduzir o dano facilitando o dano? Como podem fazer o bem fazendo o mal? Mas se tornaram intocáveis. Aliás, o estágio a que havia chegado a Cracolândia é a prova de como essa gente está certa em seu delírio caridoso...

Assim se fez o paraíso dos deserdados de Lancellotti. Ele privatizou o tal “Povo de Rua”, que passou a ser propriedade sua, de sorte que o Poder Público não pode fazer valer a Constituição, as leis, sem antes pedir licença a este senhor feudal dos desenganados. No tempo em que ele reinou absoluto, a Prefeitura se desobrigou de dar qualquer resposta àquela área da cidade.

De volta

Assim como o nosso Cavaleiro das Trevas resistiu às ações do Poder Público na Cracolândia, resiste agora às medidas da Prefeitura para impedir que os baixos de viaduto se transformem em moradia de miseráveis e em esconderijo de marginais. Ouvindo vozes que certamente não as do Espírito Santo, Lancelotti, em sua glossolalia, mistura tudo na mesma taça de fel: ignora a ação contra o crime e acusa uma suposta tentativa de esconder os pobres.

A imprensa cai na sua porque ele é bom de marketing, e o jornalismo adora ser piedoso, além de ter grande atração pelos humildes. Não faz três anos, criticar Lula, por exemplo, era como jogar pedra na cruz. Afinal, ele tinha sido pobre... Os albergues existem, mas não se pode obrigar o sem-teto a usá-los. Se, como quer Lancellotti, tudo se resumisse a um esforço para esconder os seus “clientes”, estes teriam sido retirados à força de áreas muito mais nobres da cidade do que os vãos dos viadutos. Basta um passeio de carro pela própria Avenida Paulista para encontrá-los.

A versão do padre é desmentida pelos fatos. Mas ele dá o tom da notícia. Sua leitura do mundo pauta os jornais. A capa do caderno Cotidiano, da Folha, na sexta, não podia ser mais explícita ao estampar na manchete: “Serra põe rampa antimendigo na Paulista”. Corresponde a um decreto. A partir de agora, está estabelecido que a única função da obra é afastar mendigos — logo, o pobre — daquela área. Ora, isso é o que diz... Lancellotti! Um trecho da reportagem, aliás, é emblemático. Está escrito: “A Folha encontrou dez pessoas na área, entre as quais quatro crianças e um bebê de dez meses”. Mais uma razão, entendo, para que sejam retiradas de lá. Afinal, qual seria o melhor procedimento? Instalar nos baixos dos viadutos luz e água encanada para que as crianças possam ao menos se banhar?

Ouvido, é o morador quem entrevista o jornalista: “Como você se sentiria se fosse expulso de sua casa? É assim que eu me sinto hoje.” Eis o problema: Lancellotti deve ter dito a ele que ali é sua casa. Só que não é. Ali é o espaço público. Não pode ser privatizado por pobres, ricos, padres, bispos ou pelo papa. A imprensa, nessas horas, quase sempre se alinha com o “oprimido” à vista, sem jamais se indagar se a “solução” pode ser generalizada — ou seja: é permitido que cada um ocupe a área pública que julgue atender à sua necessidade?

Viés

Padre Lancellotti, que é cristão, suponho, parece pouco preocupado com a alma dos outros filhos de Deus. Algo em sua particular leitura da Bíblia lhe diz que a pobreza enobrece as almas de seu rebanho tanto quanto o conforto material dos não miseráveis parece predispô-los ao pecado e ao fogo do inferno. Para a Teologia do Absurdo, assaltado não tem alma, porque esta lhe teria sido tirada pelo pecado social que cometeu de não ser mais um dos miseráveis sob a guarda do Cavaleiro das Trevas.

Todos sabem o enorme apreço que tenho pela Igreja Católica. Mas, definitivamente, não por esta de padre Júlio Lancellotti, em que não reconheço, de resto, nem mesmo a orientação que parte do Vaticano. Acaba de sair, diga-se, uma edição sintetizada do Catecismo, na forma de perguntas e respostas, num total de 598. Se me der na telha, listo as muitas vezes em que a atuação deste senhor entra em choque com a orientação da Igreja de Roma. Tudo indica que ele submete a crença a um livre exame, assim como faz com as leis e, infelizmente, com a verdade.

Sim, este é um texto duro. Dos mais duros que escrevi. O país enfrenta uma das crises políticas mais sérias de sua história justamente porque homens públicos não viram mal nenhum em trapacear, prevaricar, mentir, desprezar a Constituição e todos os códigos legais. Lancellotti se protege na autoridade que sua condição de padre lhe confere para tentar impedir que se cumpra o Estado de Direito. Comporta-se como um usurpador da gerência do espaço público.

Finalmente, que a Igreja Católica no Brasil busque afinar melhor seus instrumentos com a orientação da hierarquia romana. Uma “Pastoral do Povo de Rua”, com este nome, parece querer eternizar tal situação como uma condição permanente, transformando essas pessoas num misto de categoria sociológica e religiosa. Não estranha que alguns advoguem, nesse contexto, que as leis tenham uma interpretação de exceção. Ora, como poderiam ser aplicados ao “povo de rua” os códigos feitos para o “povo que não é de rua”?

Que o padre Júlio Lancellotti colabore com os miseráveis e com a Prefeitura ajudando a convencer as pessoas que moram na rua a dormir no albergues. Que leve a sua vocação pastoral, ou o que dela sobreviveu, para esses lugares, lutando para que as condições de atendimento sejam permanentemente melhoradas. Que ore, finalmente, pelo “povo”, tanto pelo da rua como pelo das casas. E que deixe o Estado democrático fazer o seu trabalho.

Reinaldo Azevedo
Enviado por Paulo Miranda em 24/01/2024
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