Um cérebro bizarro (Delírios 2)

Ao ler um artigo na Folha de São Paulo, de 21/05/2021, intitulado “Multidões dentro de mim”, de autoria de Claudia Costin, chamou-me atenção especialmente os dois parágrafos iniciais:

“Walt Whitman, o grande poeta da Revolução Americana, de acordo com o nosso Paulo Leminski, num poema chamado ‘Song of Myself 51’ afirma ‘I am large, I contain multitudes’, ou, em tradução livre, ‘Sou grande, contenho multidões’.

Essa frase foi usada em ‘Fundamentals’, livro recente do físico Frank Wilczek, para mostrar como o espaço é infinito não só fora de nós, mas dentro do cérebro humano, por conter percepções do mundo e lembranças que se acumulam e dialogam entre si.”

Isso porque esses dois parágrafos me fizeram lembrar de um dos delírios que tive no período dramático que passei num hospital em 2019, em tratamento de um AVC isquêmico que me vitimou, como comentei aqui no artigo “Como é lindo viver” (anterior a este).

Enquanto estava na UTI, delírios diversos me assaltavam. E um deles, lembro-me bem, relacionava-se a um paciente que fora parar no hospital por ter tentado suicidar-se, enfiando à força uma chave de fenda no cérebro.

Eu sabia dos detalhes porque os médicos conversavam na minha frente sobre um pedaço de cérebro que sobrara desse paciente, única coisa que conseguiram salvar do corpo dele. Esse pedaço de cérebro estava dentro de um invólucro, que parecia ser o resto do crânio do paciente. Os médicos debruçavam-se sobre esse invólucro com o cérebro, intrigados com um fato curioso: aquele pedaço de cérebro entabulava diálogo consigo mesmo.

Deixaram aquele pedaço de cérebro sobre uma prateleira atrás da cama do paciente à minha frente, entre outros objetos ali existentes, e foram embora.

Por isso, passei a conviver com aquele pedaço de cérebro, ouvindo o diálogo que encetava consigo mesmo. Eram dois interlocutores ali, e a conversa banal, como sói ocorrer com indivíduos com baixo estofo intelectual, girava em torno de assuntos corriqueiros mais afeitos a uma conversa de botequim, como futebol, política, clima, etc. Era sobre a jogada de um jogador no jogo de ontem, o ato repulsivo de um político conhecido, o tempo que ameaçava uma chuva. Provavelmente, tivesse sido aquele o pedaço de cérebro de um filósofo, a conversa giraria sobre a adequação ou não das ideias de Platão aos dias de hoje, ou, caso tivesse sido o de um médico, sobre a adequação ou não de tratamentos precoces, com remédios duvidosos, de doenças novas que se espraiam como epidemias.

O pedaço de cérebro também dormia, e, quando acordava, os dois interlocutores cumprimentavam-se entre si com um “bom dia”. A seguir, punham-se logo a conversar entre si sobre os mais variados assuntos, incansável e interminavelmente.

Pensei que, se aquele pedaço de cérebro sobrevivera a um atentado tão violento contra si, ele seria indestrutível. Assim, estaria fadado a viver dessa forma para sempre, dialogando consigo mesmo sobre assuntos corriqueiros pela eternidade.

Aquilo se configurava como algo extraordinário para mim naquele momento. Pois aquela conversa constante e eterna era tão bizarra que se mostrava mais surreal do que o próprio padrão surreal da condição delirante em que me encontrava.

E fazia planos para que, quando saísse do hospital, curado, contasse sobre aquele pedaço de cérebro falante para todos os meus conhecidos. Porque é falando sobre coisas extraordinárias é que despertamos atenção de nossos interlocutores nas nossas conversas cotidianas.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 22/05/2021
Reeditado em 23/05/2021
Código do texto: T7261473
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