OS ASPECTOS NEUROPATOLÓGICOS DA SÍNDROME DE WERNICKE-KORSAKOFF.

UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO (UPE).

BACHARELADO EM PSICOLOGIA.

DISCIPLINA: FISIOLOGIA DOS SISTEMAS.

DOCENTES: SINARA MÔNICA VITALINO DE ALMEIDA E NATALIE EMANUELLE RIBEIRO RODRIGUES.

DISCENTE: RAUL MAGALHÃES BRASIL.

GARANHUNS, 2021.

SUMÁRIO:

TIPOS DE MEMÓRIA E AMNÉSIA

-memória declarativa e não-declarativa

-amnésia

OS LOBOS TEMPORAIS E A MEMÓRIA DECLARATIVA

-Lobos temporais mediais e o processamento de memória

-O Diencéfalo e o processamento de memória

A SINDROME DE WERNICKE-KORSAKOFF

-Histórico

-Aspectos Clínicos

-Aspectos neuroquímicos

-Aspectos neuropatológicos

-Subdiagnóstico

-Diagnóstico

-Tratamento

-Prognóstico

TIPOS DE MEMÓRIA E AMNÉSIA.

O aprendizado é a aquisição de informações ou novos conhecimentos, enquanto a memória trata-se da retenção da informação apreendida. Constantemente aprende-se e lembra-se diversas coisas diferentes, muitas vezes o aprendizado e a memorização são realizados por diferentes máquinas neurais. De modo que não existe uma estrutura encefálica ou mecanismo celular que sozinhos deem conta de todo o processo de aprendizagem.

Memória Declarativa e Não-Declarativa.

A memória declarativa trata-se da memória que temos sobre fatos e eventos, como por exemplo, as capitais de cidades, acontecimentos históricos, ou eventos de nossa vida.

A memória não-declarativa pode ser dividida em diversas categorias, sendo a mais importante para este trabalho a memória de procedimentos, que seria a memória para para habilidades, hábitos e comportamentos, como por exemplo, tocar piano, jogar bola ou andar de bicicleta.

A principal diferença entre esses dois tipos de memória está no fato de que as memórias declarativas estão disponíveis para evocação consciente, enquanto as memórias não-declarativas geralmente não estão. No exemplo do ato de andar de bicicleta, normalmente não lembramos da primeira vez em que andamos de bicicleta(a parte declarativa), mas o procedimento de pedalar para gerar a movimentação é algo que conseguimos lembrar sem evocar à consciência essa memória. Uma outra diferença é que as memórias declarativas são frequentemente fáceis de formar, e também fáceis de esquecer. Ao passo de que a formação de memórias não-declarativas tende a requerer um período de repetição e prática durante mais longo e, deste modo, dificilmente são esquecidas.

Amnésia Retrógrada e Anterógrada.

O esquecimento é algo comum na vida do ser-humano, no entanto existem doenças ou lesões cerebrais(neuropatologias) que causam a amnésia, que traduz-se por uma grave perda da memória ou da capacidade de aprender. Entre os principais causadores de amnésia estão: concussão, alcoolismo crônico, encefalite, tumores cerebrais e acidente vascular cerebral.

Após o trauma cerebral é possível que a perda de memória se manifeste de duas principais formas: amnésia retrógrada e amnésia anterógrada. A amnésia retrógrada é caracterizada pela perda de memórias referentes aos eventos anteriores ao trauma. A pessoa acidentada esquece coisas que outrora sabia. Em casos graves de amnésia retrógrada pode haver a perda total da informação declarativa aprendida antes do trauma. A amnésia anterógrada, por sua vez, refere-se a incapacidade de formar novas memórias após o trauma cerebral, no caso de amnésia anterógrada grave, o indivíduo se torna incapaz de aprender qualquer coisa nova.

Em casos clínicos de trauma cerebral, é comum que as amnésias retrógrada e anterógrada aconteçam simultaneamente com diferentes graus de intensidade.

OS LOBOS TEMPORAIS E A MEMÓRIA DECLARATIVA.

Os lobos temporais contém as principais estruturas que atuam na formação de memórias declarativas. Dentre essas estruturas pode-se citar o neocórtex temporal, que pode ser um sítio de armazenamento da memória de longo prazo, assim como o hipocampo e outras estruturas e outras estruturas que são críticas para o processo de memorização.

Os Lobos Temporais Mediais.

Um grupo de estruturas interconectadas localizadas no lobo temporal medial são de grande importância para a consolidação da memória declarativa. Dentre essas estruturas podemos citar principalmente o hipocampo, as áreas corticais próximas e as vias que conectam essas estruturas para outras partes do cérebro.

O hipocampo é uma estrutura dobrada, situada no lobo temporal, inferior ao hipocampo, estão três regiões corticais importantes que cercam o sulco rinal. São elas o córtex entorrinal, que ocupa a parte medial do sulco rinal; o córtex perirrinal, na margem lateral, e o córtex para-hipocampal que se situa lateralmente ao sulco rinal.

Aferentes ao lobo temporal medial vêm de áreas associativas do córtex cerebral, contendo informações altamente processadas de todas as modalidades sensoriais. Os sinais de entrada da informação atingem primeiramente os córtices rinal e para-hipocampal, antes de serem passados para o hipocampo. Uma das principais vias eferentes do hipocampo é o fórnix, que circunda o tálamo antes de terminar o hipotálamo.

O Diencéfalo.

O diencéfalo é uma das regiões do cérebro ligadas à memória e a amnésia, as três regiões do dessa porção do cérebro implicadas no processamento da memória de reconhecimento são os núcleos anterior e dorsomedial do tálamo, e os corpos mamilares no hipotálamo. Um eferente importante da formação hipocampal é um feixe de axônios que constituem o fórnix, sendo que a maior parte desses axônios projetam-se para os corpos mamilares.

Neurônios nos corpos mamilares projetam-se então para o núcleo anterior do tálamo. Esse circuito, do hipocampo para o hipotálamo, para o núcleo anterior e para o córtex cingulado, é parte do circuito de Papez. O núcleo dorsomedial também recebe aferências oriundas de estruturas do lobo temporal, incluindo a amígdala e o neocórtex inferotemporal, e projeta-se praticamente para todo o córtex frontal.

A SÍNDROME DE WERNICKE-KORSAKOFF

Histórico.

Carl Wernicke observou, em 1881, sintomas em três pacientes, dois alcoolistas e uma paciente com vômitos persistentes após ingestão de ácido sulfúrico, que se apresentaram com estupor progressivo, evoluindo para a coma e morte. Descreveu pela primeira vez uma patologia de início súbito, caracterizada por paralisia dos movimentos oculares, marcha atáxica e confusão mental.(...) Entre 1887 a 1891, o psiquiatra russo Sergey Korsakoff ressaltou a relação entre a encefalopatia de Wernicke e a desordem de memória, como sendo “duas faces de uma mesma doença". O postulado de que uma única causa é responsável pela doença de Wernicke e a psicose de Korsakoff foi feito inicialmente em 1897, logo então essa patologia passou-se a chamar de “Síndrome de Wernicke-Korsakoff”. (CADORE M.; FERNANDES J.; MACHADO R.; MARTINS F.; ZUBARAN C. P. 603)

Aspectos Clínicos.

“Consiste em duas fases distintas de um mesmo processo patológico: inicialmente surge, mas nem sempre, a encefalopatia de Wernicke (fase aguda do síndrome) caracterizada pela tríade clínica clássica de estado confusional agudo (perturbação aguda e flutuante da atenção e do correto processamento dos estímulos oriundos do meio externo), oftalmoparesia (paresia de um ou mais músculos extra-oculares), e ataxia (perda da coordenação motora). O nistagmo (movimentos oculares involuntários e oscilatórios) também é característico desta fase, apesar de não constar na descrição clássica. Com a progressão do processo patológico, a encefalopatia pode progredir para um quadro crônico – síndrome de Korsakoff – marcado por uma amnésia anterógrada (incapacidade de formar novas memórias) e confabulação (produtos falsos da memória), à medida que os sinais da primeira subsidem. Se a identificação e abordagem terapêutica deste síndrome forem tardias poderão surgir estupor, coma e, eventualmente, a morte. (ENES, André.; SILVA, André. P. 121.)

A memória imediata está intacta, mas a memória de curto prazo está comprometida. O defeito de aprendizado é o aspecto que leva à incapacitação do paciente na sociedade, o qual fica apto para executar somente tarefas simples e habituais.(...) A memória a longo prazo parece ser mantida através da rede neural multifocal, mais do que as custas de pontos anatômicos específicos, uma vez que um paciente com lesões severas tidas como específicas para síndrome de Wernicke-Korsakoff provou ter memória excelente. (CADORE M.; FERNANDES J.; MACHADO R.; MARTINS F.; ZUBARAN C. P. 604.)

Em seu livro “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”(1997) o neurologista Oliver Sacks descreve no capítulo intitulado “O Marinheiro Perdido” sua experiência com o paciente Jimmie G. em seu Lar de Idosos, que sofria com a síndrome de Wernicke-Korsakoff. Ele relata:

”Nos testes de inteligência, ele demonstrou grande capacidade Era perspicaz, observador e lógico, resolvendo sem dificuldades problemas complexos e quebra-cabeças — isto é, se eles pudessem ser resolvidos com rapidez.(...) Testando sua memória, constatei uma perda severa e extraordinária da memória recente, pois tudo o que lhe era dito ou mostrado tendia a ser esquecido em poucos segundos” (SACKS, Oliver. P. 42.)

“Seus défícits de memória são orgânicos, permanentes e incorrigíveis, embora surpreenda o fato de irem tão longe no tempo.” (SACKS, Oliver. P. 49.)

Aspectos Neuroquímicos.

A absorção de tiamina é prejudicada pela deficiência nutricional e pelo álcool, dificultando o tratamento de alcoolistas. A situação é frequentemente agravada pela doença hepática subjacente, que leva à redução dos estoques corporais e à diminuição do metabolismo de tiamina. A disfunção hepática pode também acentuar os efeitos tóxicos do álcool sobre o cérebro, possivelmente através de um desequilíbrio no metabolismo dos aminoácidos. (CADORE M.; FERNANDES J.; MACHADO R.; MARTINS F.; ZUBARAN C. P. 604.)

 A tiamina (vitamina B1) é uma das vitaminas essenciais do complexo B, possuindo um papel central no catabolismo de hidratos de carbono e formação de neurotransmissores. (ENES, André.; SILVA, André. P. 122.)

Níveis reduzidos das referidas enzimas conduzem a uma menor síntese energética e morte celular. O ser humano possui cerca de 30-50mg em reservas de tiamina, que se estima poderem terminar em 2 a 3 semanas. Por outro lado, as necessidades de tiamina aumentam com o abuso do álcool e aumento da ingestão de hidratos de carbono, dado que o primeiro é catabolizado de forma análoga a um glícido. Assim, entende-se que a combinação de uma dieta desequilibrada, assim como uma absorção gastrointestinal, armazenamento hepático e utilização cerebral de tiamina comprometidas, como se verifica no alcoolismo crónico, potencializam o desenvolvimento da síndrome. (ENES, André.; SILVA, André. P. 123.)

Sacks relata que seu paciente abusou do uso de álcool em determinado ponto da vida, o que pode ter levado ao quadro de doença hepática e malnutrição que prejudicam a absorção de tiamina pelo corpo. Sacks descreve:

“Se a estrutura e âncora habituais, Jimmie parou de trabalhar, ”descontrolou-se” e passou a beber demais, tinha havido uma certa perda de memória, do tipo encontrado na síndrome de Korsakov, em meados e especialmente no final dos 60, mas não tão grave que Jimmie não fosse capaz de ”seguir em frente” no seu jeito despreocupado. Mas ele se pôs a beber ainda mais em 1970” (SACKS, Oliver. P. 48.)

Aspectos Neuropatológicos.

Em termos macroscópicos, as lesões mais frequentes encontram-se no núcleo talâmico dorso medial (bilateralmente), nos corpos mamilares, na substância cinzenta peri-aquedutal e no verme superior do cerebelo, regiões do encéfalo que são essenciais na construção da memória, o que causaria a amnésia anterógrada. Para agravar esse quadro ocorre também atrofia cortical generalizada, afetando especialmente o lobo frontal e temporal. Essa lesão no córtex cerebral seria a responsável pela amnésia retrógrada e até mesmo uma complicação à já existente questão da identidade, sendo que o lobo frontal tem enorme importância na formação da personalidade e na integração de inúmeras informações corticais.(...) No entanto, torna-se necessário realçar que as alterações macro e microscópicas dependem do estado e da severidade da encefalopatia de Wernicke. (ENES, André.; SILVA, André. P. 123.)

Subdiagnóstico.

A síndrome de Wernicke-Korsakoff é de difícil diagnóstico, seus sintomas geralmente são confundidos com o de outras doenças, o que pode gerar subdiagnósticos que dificultam o tratamento correto da doença. Isso pode ser parcialmente explicado tanto pela pela variabilidade de apresentações clínicas como também devido à baixa especificidade dos sinais neurológicos. Em sua fase mais simples de deficiência de tiamina, os sinais apresentados são vagos, podendo existir sintomas neurológicos e cardiovasculares presentes no diagnóstico de diversas outras doenças. Ao passo em que em sua fase crônica, onde a síndrome já está desenvolvida, os sinais são mais específicos existindo confabulações e uma perda marcada da memória anterógrada comparativamente às restantes capacidades cognitivas.

No caso de Sacks, ele conseguiu concluir que Jimmy sofria da síndrome. No entanto, é possível confirmar que ele só conseguiu diagnosticá-la tão precisamente devido ao fato de que a síndrome em Jimmie já tinha atingido seu estado crônico.

Diagnóstico.

O diagnóstico da síndrome é essencialmente clínico, visto que não existem exames de rotina específicos que possibilitem a sua despistagem. Deste modo, o clínico deve suspeitar a presença da síndrome em indivíduos que apresentem um quadro de malnutrição ou condições que interfiram no processo de metabolismo e digestão. O diagnóstico pode ser feito ao determinar a concentração de tiamina no sangue do paciente, no entanto, em detrimento do seu baixo nível de sensibilidade e especificidade a ressonância magnética cerebral pode ser útil para confirmar a suspeita clínica.

Tratamento.

O tratamento da síndrome de Wernicke-Korsakoff deve ser imediatamente iniciado com a administração de tiamina, uma vez que esta previne a progressão da doença e reverte as anormalidades cerebrais que não tenham provocado danos estruturais estabelecidos.

Os pacientes devem ser hospitalizados e tiamina 50-100 mg deve ser administrada por via endovenosa diariamente por vários dias, em função da comprometida absorção intestinal dos alcoolistas. A hipomagnesemia pode dificultar a resposta ao tratamento e deve ser tratada com reposição apropriada. A solução de tiamina deve ser recente, uma vez que pode ser inativada pelo calor. A despeito do risco de diminuição da absorção intestinal com terapia oral, doses de 50 a 100 mg de tiamina, três a quatro vezes por dia, devem ser instituídas por vários meses. O paciente deve também aderir a uma dieta balanceada

Prognóstico.

A taxa de mortalidade é alta, variando de 10 a 20%, principalmente devido a agravantes como infecção pulmonar, septicemia, doença hepática descompensada e a um estado irreversível de deficiência de tiamina. A pronta instituição do tratamento pode modificar o prognóstico da síndrome de Wernicke-Korsakoff.

Uma vez estabelecida, a síndrome de Korsakoff tem um prognóstico pobre, levando cerca de 80% dos pacientes a uma desordem crônica de memória. Evidências sugerem que os pacientes acometidos são aptos ao aprendizado de tarefas repetitivas simples envolvendo memória procedural. A recuperação dos sintomas amnésicos é lenta e incompleta e o grau máximo de recuperação poderá demorar um ano para acontecer.

Jimmie não conseguiu progredir no caso clínico de sua psicopatologia, no entanto, através das terapias ocupacionais e espirituais oferecidas pelo Lar de Idosos onde estava internado Jimmie consegue encontrar felicidade e sentido para a sua vida:

“Faz agora nove anos que conheço Jimmie e, neuropsicologicamente, não ocorreu nele mudança alguma. Continua sofrendo a mais grave, a mais devastadora síndrome de Korsakov; não consegue lembrar coisas isoladas por mais de alguns segundos e apresenta uma intensa amnésia que remonta a 1945. Mas, humana e espiritualmente, ele às vezes é um homem muito diferente — não mais irrequieto, agitado, entediado e perdido, mas profundamente atento à beleza e alma do mundo, rico em todas as categorias kierkegaardianas e estéticas: o moral, o religioso, o dramático.” (SACKS, Oliver. P. 55.)

REFERÊNCIAS

BEARS, Mark. F.; CONNORS, Barry W.; PARADISO, Michael A. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. Porto Alegre, Brasil. Editora Grupo A, 2008.

CADORE M.; FERNANDES J.; MACHADO R.; MARTINS F.; ZUBARAN C. Aspectos clínicos e neuropatológicos da síndrome de Wernicke-Korsakoff. Rev. Saúde Pública, 30(6): 602-608, 1996.

ENES, André.; SILVA, André. Síndrome de Wernicke-Korsakoff - revisão literária da sua base neuroanatómica. Arquivos de Medicina, 27(3): 121-127, 2013.

SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo, Brasil. Editora Companhia das Letras, 1997.

Raul Brasil
Enviado por Raul Brasil em 21/03/2021
Código do texto: T7212080
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