A história de Luíza
Um dia Luíza acordou com um estranho sentimento a incomodar-lhe o peito. Parecia que ele estava oco. Era como se, durante a noite, alguém tivesse remexido em seu coração e retirado de lá uma boa parte do seu conteúdo emocional.
Sentada na cama, ela procurou entender o que tinha acontecido. Talvez fosse um sonho qualquer que ela teve na noite anterior, que estaria provocando aquela desagradável sensibilidade que estava experimentando naquele momento, mas ela não conseguia recordar-s de nada.
Olhou em volta do quarto para ver se alguma coisa ali ajudá-la a entender o que estava acontecendo. Mas não. O quarto continuava como antes. Nada mudara na sua conformação. Eram as mesmas cortinas bege, o mesmo azul claro das paredes, o mesmo retrato da mulher segurando um cântaro, pendurado na cabeceira da cama, os mesmos armários embutidos, revestidos de madeira cerejeira.
Nada de diferente do que sempre fora. Tentou também se lembrar se alguma coisa, porventura ocorrida antes de dormir, que pudesse ser a causa daquele sentimento, mas também desta vez a memória não a socorreu.
Deus, o que teria acontecido para que aquele sentimento tão desagradável tivesse se instalado em seu peito? Foi então que ela olhou para Inácio, seu marido. Ele ainda estava dormindo. Ela nunca havia feito isso antes, mas agora, uma estranha curiosidade a fez deter os olhos e os ouvidos focados nele por mais tempo. Era engraçado isso. Depois de mais de vinte anos de casados, três filhos, uma saga feita de lutas e renúncias para construir uma família e um pequeno patrimônio, a experiência de uma vida inteira com aquele homem subitamente foi-lhe colocada sob uma nova visão. De repente lhe pareceu que acabava de acordar ao lado de um desconhecido. Ou pelo menos de alguém que, nesse momento não era aquele homem com ela vivera durante duas décadas..
Ela sempre soube que ele roncava alto. Descobriu isso na primeira vez que dormiram juntos. Naquela ocasião ela achou o ronco dele engraçado. Parecia uma serra elétrica. Ás vezes era como se a serra encontrasse um nó na madeira e ela então patinava, soltando um som rouco, abafado e surdo. E quando ele bebia um pouco mais à noite, roncava como uma panela de pressão descarregando o excesso de vapor.
“Há vinte anos que estou suportando isso”, pensou. Ela nunca havia colocado a questão desse modo. Na verdade, o ronco dele, no começo, até a divertia. Depois, praticamente acostumada, nem ligava mais. Mas agora, ela percebia, com certa irritação, que isso a incomodava e não era pouco.
Na cozinha, durante o café, aconteceu outra coisa que a deixou incomodada. Enquanto ela preparava o café e arrumava e mesa, Inácio pegava o jornal e passava os olhos nas notícias do dia. Sempre fora assim. Era quase como um ritual. Trocavam poucas palavras nessa ocasião. Frequentemente acontecia de o leite, ou o café, esfriarem enquanto ele lia o jornal.
“Este café e este leite estão frios” dizia ele nessas ocasiões, e ela prontamente ia esquentá-los. Isso também já era uma ocorrência tão habitual que ela nem se lembrava mais quando começara. Naquele dia, porém, a frase “estão frios”, a incomodou. Caiu como se fosse uma censura pessoal, algo que podia ser-lhe computada como uma incompetência na sua forma de executar suas obrigações domésticas e ela não gostou.
“Eles estavam bem quentinhos quando eu os pus ai”, respondeu ela, com um azedume que nunca pensou ser capaz. “Se você não ficasse fazendo hora com esse jornal...”, foi a frase que lhe saiu automaticamente da boca, como se ela sempre estivesse ali, mas só agora estivesse sendo libertada.
Inácio ergueu os olhos do jornal e olhou para ela como se estivesse vendo-a pela primeira vez.
“O que foi?” perguntou. “Está se sentindo bem?”
“Nada”, respondeu Luíza, pegando o bule de leite e levantando-se para esquentá-lo.
“O que está havendo comigo?”, perguntou-se uma e mais vezes durante a manhã. Na casa nada mudara. Com os filhos estava tudo igual. A mesma ritualística para tirá-los da cama, fazê-los arrumar os quartos, tomar banho, café e ir para a escola. Nada de diferente nisso, e ela percebeu que não era ali que estava a fonte do seu desassossego.
Na hora do almoço, com Inácio na mesa, junto com os filhos, ela percebeu que ele fazia barulho ao mastigar.
Estranho. Ela nunca notara isso. Viu que ele também costumava derramar um pouco de comida fora do prato. Sempre fizera isso. Era comum ela ter que limpar a mesa depois das refeições e o lugar de Inácio era onde se encontrava mais restos de comida.
E assim se passou também toda a tarde. À noite, quando Inácio chegou do trabalho, ela sentiu que o “selinho” que ele lhe dava era frio e convencional. Algo assim como um aperto de mão de um conhecido, um vizinho, alguém que lhe é apresentado numa reunião social. Nada que transmitisse aquela calorosa intimidade dos primeiros anos de casados e a gostosa sinestesia de sentir a proximidade e a cumplicidade de um verdadeiro parceiro, como se espera seja um marido.
Sentiu também uma leve irritação quando ele, depois do banho, foi direito para a sala e ligou a televisão. Lembrou-se que era isso que ele fazia todos os dias. Ela nunca se incomodara com esse comportamento. Mas agora, a impressão que dava era que ela era um móvel que se integrara no ambiente, e sempre estivera ali e por isso a presença dela não era mais notada.
E também com o banheiro molhado que ele sempre deixava depois do banho, nas roupas que ela encontrava espalhadas pelo quarto, e em um monte de coisas desagradáveis que ele fazia e que ela nunca houvera notado antes, Luíza começou a perceber que depois de vinte anos, era como se uma cortina tivesse sido aberta dentro da cabeça dela e ela começava a ver coisas que não via antes.
Naquela noite, depois do sexo, que lhe pareceu um longo e entediante ritual, embora ela tivesse notado que durara muito menos do que costumava durar nos primeiros tempos da relação deles, Luísa chorou. Um choro miúdo, feito de gotas quentes e silenciosas que pareciam brotar diretamente no coração e só a muito custo atingiam os dutos lacrimais. Ela sabia que as portas para uma ruptura com tudo que antes, para ela, tinha significado e valor haviam se aberto. Ou ela as fecharia novamente, sepultando tudo que havia dentro daquele quarto que tinha sido repentinamente aberto, ou então, se as deixasse abertas, seria arrastada pelos ventos que começavam a soprar de dentro dele, cada vez mais fortes.
♦
Passamos as nossas vidas procurando atribuir rótulos, identidades e valores às coisas. Quanto vale para você aquele estado de enlevamento místico, quase mágico, chamado amor? Quanto valia para um poeta romântico do século XIX, ou para um jovem, ou uma jovem que tenha modelado o amor através de um arquétipo tipo Romeu/ Julieta, por exemplo?
Talvez você pense que esses arquétipos não existem na vida real, que foram criados pela imaginação de um autor, apenas para despertar emoção nas pessoas. Mas eles existem sim. Existiam antes de Shakespeare contar a sua história sobre os jovens amantes de Verona, e continuaram a existir depois disso, com muito mais naturalidade.
O quanto você pode gostar de uma pessoa para se recusar a continuar vivendo sem ela? O que nos leva a experimentar uma intensa paixão por alguém? Certamente é o fato de nós associarmos à pessoa amada todos os atributos que o nosso sistema neurológico valoriza. E ao mesmo tempo dissociar dela aqueles que nos incomodam.
Outras pessoas podem ver que aquele (a) a quem damos o nosso amor é fisicamente sem atrativos, antipático (a), agressivo (a), cheio (a) de defeitos. Nós, no entanto, não temos essa visão. Quem ama o feio, bonito lhe parece, já diz um antigo ditado, e isso é verdade. Ora, o que é isso senão o efeito swish provocado pela emoção do amor? Um efeito que amplia as qualidades da pessoa e diminui os seus defeitos, fazendo com a nossa mente represente de uma forma muito particular a imagem que a pessoa tem para nós.[1]
Quer dizer, o nosso sistema neurológico só enxerga a pessoa pela emoção que ela nos provoca, e isso faz com que ela nos apareça à mente com as cores mais favoráveis, os sons mais agradáveis, as sensações mais deliciosas.
Isso não quer dizer que não enxergamos os defeitos da pessoa amada. Enxergamos sim, mas não os vemos. Porque nesse caso, quem dirige o processo é o nosso inconsciente. É ele quem valora a informação que chega dela. Ele amplia as qualidades e diminui os defeitos. Aumenta a resolução dos primeiros e desfoca os segundos. Daí não aceitarmos que a pessoa amada tenha uma voz irritante, um corpo desajeitado, uma postura deselegante, um odor desagradável, etc. Os outros têm a sensibilidade disso disso, nós não.
O amor, como qualquer outro estado interno que nós experimentamos, é construído com informações neurolinguísticas. Existem na pessoa amada algumas informações que o nosso inconsciente recebe, e nos fazem “crer” que aquela é a pessoa que corresponde aos nossos padrões de valores sentimentais, e conseqüentemente, a química do amor é liberada. Essa química é feita de códigos neurolinguísticos, São as cores, o brilho, o foco, a imagem, o modo de olhar, de vestir, enfim tudo que está ligado ao sentido da visão; são também as informações auditivas que vem dela, tais como o sotaque, o ritmo, a cadência, a clareza, a altura, a harmonia, o padrão de voz, tudo que se liga ao sentido da audição; e por fim, aquilo que a pessoa inspira em termos de sensações sinestésicas, como temperatura, maciez, suavidade, pressão, peso etc, que são sensibilidades ligadas aos nossos sentidos prioceptivos (tato, paladar, aroma). São esses códigos que fazem nascer o sentimento, chamado primeiro de admiração, depois de enlevamento, em seguida de encantamento e por fim de amor. Daí nascem as metáforas que antecedem a instalação desse estado: ele (a) é um pão, ele (a) me dá um calor, ele (a) pega gostoso, etc. (que são informações sinestésicas). Ela (a) é uma visão maravilhosa, um colírio para os olhos, (informações visuais). Ouvi sinos, coro de anjos, quando o (a) beijei, a vóz dele (a) é música aos meus ouvidos (informações auditivas) e por aí adiante.
Assim, da mesma forma que o amor é instalado através de informações neurolinguísicas, ele também é desinstalado, com o tempo, pela falta dessas informações. Cadê o cuidado com a aparência que ele (a) tinha quando estavam namorando? Ele (a) hoje se arruma tão bem como naqueles tempos em que estavam namorando? Cadê as frases de amor, o tom doce e modulado que ele (a) colocava na voz quando conversavam? Cadê o carinho que ele (a) punha naqueles toques, cadê a pressão daquela “pegada”, o calor daqueles abraços, o gosto daqueles beijos dos primeiros tempos?
A informação vai desaparecendo, o estado interno que ela alimentava também vai enfraquecendo. E de repente, um dia, a gente descobre que o amor acabou. Mas não foi o amor que acabou. Foram as informações que o alimentavam que deixaram de ser dadas. O amor, como qualquer outro estado interno é como é como a anedota do cavalo do fazendeiro inglês: quando está quase aprendendo a viver sem comer, ele morre.
Matamos o amor quando deixamos de fornecer as informações que o fizeram nascer. O problema é que só nos apercebemos disso quando já é tarde demais.
Luíza é uma das pessoas que vieram aos nossos treinamentos de PNL procurando um modo de recuperar as informações que a levaram a se apaixonar por Inácio. Não foi possível para ela recuperar essas informações, até porque Inácio já não queria mais dá-las. A separação acabou sendo inevitável. É que no caso dela, esse era um projeto que não dependia somente dela somente. Era preciso que Inácio também se envolvesse nele. Afinal era ele quem emitia as informações que ela precisava para gerar o estado interno que foi desinstalado com a rotina. E ele não tinha o mesmo propósito de Luíza.
Mas o caso dela teve um final feliz. Porque no nosso próprio curso ela encontrou Augusto e todas as informações que ela perdera em Inácio foram recuperadas com ele. Como ela mesma descobriu, não há nada melhor do que gostar sabendo o porquê gosta. Esse é o tipo do amor maduro que pode durar a vida inteira.[2]
Um dia Luíza acordou com um estranho sentimento a incomodar-lhe o peito. Parecia que ele estava oco. Era como se, durante a noite, alguém tivesse remexido em seu coração e retirado de lá uma boa parte do seu conteúdo emocional.
Sentada na cama, ela procurou entender o que tinha acontecido. Talvez fosse um sonho qualquer que ela teve na noite anterior, que estaria provocando aquela desagradável sensibilidade que estava experimentando naquele momento, mas ela não conseguia recordar-s de nada.
Olhou em volta do quarto para ver se alguma coisa ali ajudá-la a entender o que estava acontecendo. Mas não. O quarto continuava como antes. Nada mudara na sua conformação. Eram as mesmas cortinas bege, o mesmo azul claro das paredes, o mesmo retrato da mulher segurando um cântaro, pendurado na cabeceira da cama, os mesmos armários embutidos, revestidos de madeira cerejeira.
Nada de diferente do que sempre fora. Tentou também se lembrar se alguma coisa, porventura ocorrida antes de dormir, que pudesse ser a causa daquele sentimento, mas também desta vez a memória não a socorreu.
Deus, o que teria acontecido para que aquele sentimento tão desagradável tivesse se instalado em seu peito? Foi então que ela olhou para Inácio, seu marido. Ele ainda estava dormindo. Ela nunca havia feito isso antes, mas agora, uma estranha curiosidade a fez deter os olhos e os ouvidos focados nele por mais tempo. Era engraçado isso. Depois de mais de vinte anos de casados, três filhos, uma saga feita de lutas e renúncias para construir uma família e um pequeno patrimônio, a experiência de uma vida inteira com aquele homem subitamente foi-lhe colocada sob uma nova visão. De repente lhe pareceu que acabava de acordar ao lado de um desconhecido. Ou pelo menos de alguém que, nesse momento não era aquele homem com ela vivera durante duas décadas..
Ela sempre soube que ele roncava alto. Descobriu isso na primeira vez que dormiram juntos. Naquela ocasião ela achou o ronco dele engraçado. Parecia uma serra elétrica. Ás vezes era como se a serra encontrasse um nó na madeira e ela então patinava, soltando um som rouco, abafado e surdo. E quando ele bebia um pouco mais à noite, roncava como uma panela de pressão descarregando o excesso de vapor.
“Há vinte anos que estou suportando isso”, pensou. Ela nunca havia colocado a questão desse modo. Na verdade, o ronco dele, no começo, até a divertia. Depois, praticamente acostumada, nem ligava mais. Mas agora, ela percebia, com certa irritação, que isso a incomodava e não era pouco.
Na cozinha, durante o café, aconteceu outra coisa que a deixou incomodada. Enquanto ela preparava o café e arrumava e mesa, Inácio pegava o jornal e passava os olhos nas notícias do dia. Sempre fora assim. Era quase como um ritual. Trocavam poucas palavras nessa ocasião. Frequentemente acontecia de o leite, ou o café, esfriarem enquanto ele lia o jornal.
“Este café e este leite estão frios” dizia ele nessas ocasiões, e ela prontamente ia esquentá-los. Isso também já era uma ocorrência tão habitual que ela nem se lembrava mais quando começara. Naquele dia, porém, a frase “estão frios”, a incomodou. Caiu como se fosse uma censura pessoal, algo que podia ser-lhe computada como uma incompetência na sua forma de executar suas obrigações domésticas e ela não gostou.
“Eles estavam bem quentinhos quando eu os pus ai”, respondeu ela, com um azedume que nunca pensou ser capaz. “Se você não ficasse fazendo hora com esse jornal...”, foi a frase que lhe saiu automaticamente da boca, como se ela sempre estivesse ali, mas só agora estivesse sendo libertada.
Inácio ergueu os olhos do jornal e olhou para ela como se estivesse vendo-a pela primeira vez.
“O que foi?” perguntou. “Está se sentindo bem?”
“Nada”, respondeu Luíza, pegando o bule de leite e levantando-se para esquentá-lo.
“O que está havendo comigo?”, perguntou-se uma e mais vezes durante a manhã. Na casa nada mudara. Com os filhos estava tudo igual. A mesma ritualística para tirá-los da cama, fazê-los arrumar os quartos, tomar banho, café e ir para a escola. Nada de diferente nisso, e ela percebeu que não era ali que estava a fonte do seu desassossego.
Na hora do almoço, com Inácio na mesa, junto com os filhos, ela percebeu que ele fazia barulho ao mastigar.
Estranho. Ela nunca notara isso. Viu que ele também costumava derramar um pouco de comida fora do prato. Sempre fizera isso. Era comum ela ter que limpar a mesa depois das refeições e o lugar de Inácio era onde se encontrava mais restos de comida.
E assim se passou também toda a tarde. À noite, quando Inácio chegou do trabalho, ela sentiu que o “selinho” que ele lhe dava era frio e convencional. Algo assim como um aperto de mão de um conhecido, um vizinho, alguém que lhe é apresentado numa reunião social. Nada que transmitisse aquela calorosa intimidade dos primeiros anos de casados e a gostosa sinestesia de sentir a proximidade e a cumplicidade de um verdadeiro parceiro, como se espera seja um marido.
Sentiu também uma leve irritação quando ele, depois do banho, foi direito para a sala e ligou a televisão. Lembrou-se que era isso que ele fazia todos os dias. Ela nunca se incomodara com esse comportamento. Mas agora, a impressão que dava era que ela era um móvel que se integrara no ambiente, e sempre estivera ali e por isso a presença dela não era mais notada.
E também com o banheiro molhado que ele sempre deixava depois do banho, nas roupas que ela encontrava espalhadas pelo quarto, e em um monte de coisas desagradáveis que ele fazia e que ela nunca houvera notado antes, Luíza começou a perceber que depois de vinte anos, era como se uma cortina tivesse sido aberta dentro da cabeça dela e ela começava a ver coisas que não via antes.
Naquela noite, depois do sexo, que lhe pareceu um longo e entediante ritual, embora ela tivesse notado que durara muito menos do que costumava durar nos primeiros tempos da relação deles, Luísa chorou. Um choro miúdo, feito de gotas quentes e silenciosas que pareciam brotar diretamente no coração e só a muito custo atingiam os dutos lacrimais. Ela sabia que as portas para uma ruptura com tudo que antes, para ela, tinha significado e valor haviam se aberto. Ou ela as fecharia novamente, sepultando tudo que havia dentro daquele quarto que tinha sido repentinamente aberto, ou então, se as deixasse abertas, seria arrastada pelos ventos que começavam a soprar de dentro dele, cada vez mais fortes.
♦
Passamos as nossas vidas procurando atribuir rótulos, identidades e valores às coisas. Quanto vale para você aquele estado de enlevamento místico, quase mágico, chamado amor? Quanto valia para um poeta romântico do século XIX, ou para um jovem, ou uma jovem que tenha modelado o amor através de um arquétipo tipo Romeu/ Julieta, por exemplo?
Talvez você pense que esses arquétipos não existem na vida real, que foram criados pela imaginação de um autor, apenas para despertar emoção nas pessoas. Mas eles existem sim. Existiam antes de Shakespeare contar a sua história sobre os jovens amantes de Verona, e continuaram a existir depois disso, com muito mais naturalidade.
O quanto você pode gostar de uma pessoa para se recusar a continuar vivendo sem ela? O que nos leva a experimentar uma intensa paixão por alguém? Certamente é o fato de nós associarmos à pessoa amada todos os atributos que o nosso sistema neurológico valoriza. E ao mesmo tempo dissociar dela aqueles que nos incomodam.
Outras pessoas podem ver que aquele (a) a quem damos o nosso amor é fisicamente sem atrativos, antipático (a), agressivo (a), cheio (a) de defeitos. Nós, no entanto, não temos essa visão. Quem ama o feio, bonito lhe parece, já diz um antigo ditado, e isso é verdade. Ora, o que é isso senão o efeito swish provocado pela emoção do amor? Um efeito que amplia as qualidades da pessoa e diminui os seus defeitos, fazendo com a nossa mente represente de uma forma muito particular a imagem que a pessoa tem para nós.[1]
Quer dizer, o nosso sistema neurológico só enxerga a pessoa pela emoção que ela nos provoca, e isso faz com que ela nos apareça à mente com as cores mais favoráveis, os sons mais agradáveis, as sensações mais deliciosas.
Isso não quer dizer que não enxergamos os defeitos da pessoa amada. Enxergamos sim, mas não os vemos. Porque nesse caso, quem dirige o processo é o nosso inconsciente. É ele quem valora a informação que chega dela. Ele amplia as qualidades e diminui os defeitos. Aumenta a resolução dos primeiros e desfoca os segundos. Daí não aceitarmos que a pessoa amada tenha uma voz irritante, um corpo desajeitado, uma postura deselegante, um odor desagradável, etc. Os outros têm a sensibilidade disso disso, nós não.
O amor, como qualquer outro estado interno que nós experimentamos, é construído com informações neurolinguísticas. Existem na pessoa amada algumas informações que o nosso inconsciente recebe, e nos fazem “crer” que aquela é a pessoa que corresponde aos nossos padrões de valores sentimentais, e conseqüentemente, a química do amor é liberada. Essa química é feita de códigos neurolinguísticos, São as cores, o brilho, o foco, a imagem, o modo de olhar, de vestir, enfim tudo que está ligado ao sentido da visão; são também as informações auditivas que vem dela, tais como o sotaque, o ritmo, a cadência, a clareza, a altura, a harmonia, o padrão de voz, tudo que se liga ao sentido da audição; e por fim, aquilo que a pessoa inspira em termos de sensações sinestésicas, como temperatura, maciez, suavidade, pressão, peso etc, que são sensibilidades ligadas aos nossos sentidos prioceptivos (tato, paladar, aroma). São esses códigos que fazem nascer o sentimento, chamado primeiro de admiração, depois de enlevamento, em seguida de encantamento e por fim de amor. Daí nascem as metáforas que antecedem a instalação desse estado: ele (a) é um pão, ele (a) me dá um calor, ele (a) pega gostoso, etc. (que são informações sinestésicas). Ela (a) é uma visão maravilhosa, um colírio para os olhos, (informações visuais). Ouvi sinos, coro de anjos, quando o (a) beijei, a vóz dele (a) é música aos meus ouvidos (informações auditivas) e por aí adiante.
Assim, da mesma forma que o amor é instalado através de informações neurolinguísicas, ele também é desinstalado, com o tempo, pela falta dessas informações. Cadê o cuidado com a aparência que ele (a) tinha quando estavam namorando? Ele (a) hoje se arruma tão bem como naqueles tempos em que estavam namorando? Cadê as frases de amor, o tom doce e modulado que ele (a) colocava na voz quando conversavam? Cadê o carinho que ele (a) punha naqueles toques, cadê a pressão daquela “pegada”, o calor daqueles abraços, o gosto daqueles beijos dos primeiros tempos?
A informação vai desaparecendo, o estado interno que ela alimentava também vai enfraquecendo. E de repente, um dia, a gente descobre que o amor acabou. Mas não foi o amor que acabou. Foram as informações que o alimentavam que deixaram de ser dadas. O amor, como qualquer outro estado interno é como é como a anedota do cavalo do fazendeiro inglês: quando está quase aprendendo a viver sem comer, ele morre.
Matamos o amor quando deixamos de fornecer as informações que o fizeram nascer. O problema é que só nos apercebemos disso quando já é tarde demais.
Luíza é uma das pessoas que vieram aos nossos treinamentos de PNL procurando um modo de recuperar as informações que a levaram a se apaixonar por Inácio. Não foi possível para ela recuperar essas informações, até porque Inácio já não queria mais dá-las. A separação acabou sendo inevitável. É que no caso dela, esse era um projeto que não dependia somente dela somente. Era preciso que Inácio também se envolvesse nele. Afinal era ele quem emitia as informações que ela precisava para gerar o estado interno que foi desinstalado com a rotina. E ele não tinha o mesmo propósito de Luíza.
Mas o caso dela teve um final feliz. Porque no nosso próprio curso ela encontrou Augusto e todas as informações que ela perdera em Inácio foram recuperadas com ele. Como ela mesma descobriu, não há nada melhor do que gostar sabendo o porquê gosta. Esse é o tipo do amor maduro que pode durar a vida inteira.[2]
[1] Swish é um tipo de exercício desenvolvido pelos praticantes de PNL para “apagar” do sistema neurológico informações que geram estados internos limitantes. É um processo que ensina a usar a memória das nossas experiências como se ela fosse um filme rodado ao contrário.
[2] Luíza é um nome fictício. Os nomes aqui foram trocados para preservar a identidade dos personagens