Matéria fecal

A gente, quando menino, ouvia de tia Vicentina, e se ria de rolar da história da menina encalhada, no povoado da Onça. A coitadinha se esforçava tanto para defecar, e não conseguia. A ponto de sua mãe recorrer à ajuda de um grampinho de cabelo para tentar livrar a filhinha

daquele entalo, aquele sofrimento sem cabimento.

Levei uns cinquenta anos para entender a razão daquele sofrer. E, paradoxalmente, ao cabo de um tour gastronômico desses de que a gente enche a boca para falar - e muito chia quando o bolso esvazia.

Não sei se fruto ou furto da combinação dos ingredientes, da idade, ou de uma reação orgânica adversa - só pra contrariar - mas o fato foi que, justo na manhanzinha da partida, a ida ao banheiro foi a mais sofrida. E nem de perto bem sucedida.

Cheguei a ler capítulos e mais capítulos ilustrativos das maravilhas de Bruxelas, do dividido país dos belgas, da sua realeza feliz e, ao cabo da espera, o rabo, neca, não defeca, além da quimera. Quimera! Recorri-me à concentração, à prece, às forças vivas dos anais...e só o incremento da tortura.

Uma ducha localizada, bem projetada, demorada - e nada. O caminhar já passara a ser uma peleja. Já o assentar - que Deus me proteja: mal mal, de banda e com que cuidados. Cu e dados? Ah, que extrema extremidade.

Um jarro da Stella Artois, entrecortado de uns cafés fortes foi que me trouxe certa descontração. Para tomar o taxi rumo ao aeroporto - e inda assim eu me via mais pra morto, reaceso o desconforto. O banheiro do aeroporto foi o meu último recurso. Tinha mais de uma hora e meia de espera, cartão de embarque já à mão, quem sabe conseguiria retomar a operação?

Vinte e cinco minutos sem leitura e a conjuração de todos os anéis, e anais, produziram, no entanto, o milagre por que esperei tanto. Não de imediato, demorado e doído. E me deu vontade de esconjurar aquele já jacente, ainda caliente, que me havia feito tanto sofrer: respeitável, to say the least. Cinco tentativas de descarga não foram suficientes para

despachá-lo rumo ao mar do Norte.

Lá restou, enorme, para testemunhar aos passantes e assentantes que o depois é bem melhor que o antes e os durantes.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 29/03/2015
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