Apocalípticos contra John Williams
Na semana passada, o documentário “A Música de John Williams” estreou no Disney+, serviço de streaming de filmes e séries. O protagonista e objeto da produção é John Williams, lendário compositor de trilhas sonoras de filmes como Harry Potter, E.T.: O Extraterrestre, Star Wars, Tubarão etc.
O que chama atenção é a existência de pessoas que desprezam as composições de Williams, que acumula 54 indicações ao Oscar (conquistou cinco). Segundo a Folha de S. Paulo (09/11, p. B4): “Há quem ainda hoje desdenhe das composições assinadas por John Williams. Música de cinema, para alguns, não deve ser equiparada à música clássica, defende um discurso destacado em determinado momento do filme”. Os defensores do músico afirmam que ele não deveria ser visto como alguém que “traiu” a música clássica, mas sim como uma espécie de “popularizador” de seus acordes.
Os argumentos “música de cinema não é música clássica” e “John Williams traiu a música clássica” estão evidentemente interligados. Talvez o primeiro possa até servir como uma das premissas que levam ao segundo, que por sua vez poderia ser uma conclusão numa construção silogística. Trata-se de uma argumentação que compreende as trilhas sonoras cinematográficas como produções de baixo valor cultural e estético e que por isso jamais devem ser comparadas – muito menos equiparadas – à música clássica.
Assim, John Williams, que é um maestro, não estaria criando música clássica ao compor para filmes, e sim uma música “inferior”, que apenas parece ser música clássica. Essa tese pode muito bem ser enquadrada naquilo que o mestre Umberto Eco chamava de “apocalíptico”, porque expressa resistência à ideia de que a música clássica pode assumir novas formas, inclusive composições para o cinema.
Quem defende o músico afirma que ele leva a música clássica a um público mais amplo. Contudo, é um argumento que não convence os “apocalípticos”. Pelo contrário, eles associam a popularização à cultura de massa. Ser um “popularizador” seria mais uma “evidência” de que Williams seria um “traidor” da música clássica.
Nos estudos clássicos de filosofia e sociologia, como a Teoria Crítica (da Escola de Frankfurt), encontra-se a tese de que a indústria cultural degrada a qualidade da cultura. Em “Dialética do Esclarecimento”, Theodor Adorno e Max Horkheimer diz que os produtos da indústria cultural, incluindo os filmes, “paralisam [a imaginação e a espontaneidade] pela sua própria constituição objetiva. São feitos de tal modo que a sua adequada apreensão exige não só prontidão de instinto, dotes de observação e competência específica como também são feitos para impedir a atividade mental do espectador, se este não quiser perder os fatos que passam rapidamente à sua frente”.
É possível que quem rejeita a possibilidade de música de cinema ser considerada música clássica se fundamente numa perspectiva intelectualista e aristocrática. Segundo esse ponto de vista, a música clássica é para poucos. A complexidade das composições não poderia ser entendida por todo mundo. A popularização, portanto, implicaria em “mastigar” para que a “massa” compreenda. Williams seria “traidor” porque ao levar a música para um público amplo, supostamente ele a estaria “degradando” até perder seu atributo como “clássica”.
Em Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco tem uma explicação que expõe o cerne da crítica apocalíptica: ele cita que, na cultura de massa, o “modelo de momento de descanso” se torna “norma”, o que o torna substituto de “todas as experiências intelectuais”, provocando o “entorpecimento da individualidade”, entre outros problemas. Assiste-se filmes para ter lazer, se divertir, relaxar, descansar. A (falsa) dicotomia: escutar música clássica seria uma “atividade intelectual” enquanto a trilha sonora colaboraria com a normalização da evasão episódica – o escapismo fornecido pelo entretenimento.
Entretanto, o semiólogo italiano alerta: “Pôr em discussão a cultura de massa como a situação antropológica em que a evasão episódica se torna norma é uma coisa. E um dever. Mas pôr em discussão como radicalmente negativa a mecânica da evasão episódica é outra, e pode constituir um perigoso hybris intelectualista e aristocrática”.
É por essa e outras razões que o argumento apocalíptico pode ser contestado. Embora seja necessário fazer uma análise crítica da cultura de massa, considerar qualquer produto dessa cultura como essencial e inexoravelmente “sem valor”, “degradado” e “ruim” é arrogância elitista.
O filme e a trilha sonora podem ser tanto objeto de lazer como objeto de atividade intelectual. Não é nenhum absurdo dedicar dissertações, teses de doutorado e artigos científicos para estudar a rica e multifacetada obra de John Williams, por exemplo. Há quem assista filmes ou escute música por variados motivos relacionados ao divertimento e afins, mas há também quem elabore reflexões científicas ou filosóficas sobre esses produtos da cultura de massa, que oferecem muito mais do que escapismo quando abordam temas profundos, sociais, existenciais, políticos etc. Há produções musicais e cinematográficas que são culturalmente relevantes, que possuem valor simbólico, histórico, interpretativo e que exigem do público uma percepção crítica refinada.
As trilhas sonoras (como a obra musical completa) de John Williams são, sem sombra de dúvidas, culturalmente significativas e possuem todos os valores citados anteriormente – por exemplo, a complexidade emocional que elas expressam é digna de ser considerada profunda e inspiradora de reflexão.
E muitas de suas técnicas são diretamente retiradas de obras musicais de grandes compositores da música clássica, como o leitmotiv wagneriano: cada personagem principal tem o seu próprio tema melódico. A obra Der Ring des Nibelungen, de Richard Wagner, composta por quatro óperas, oferece essa e outras ferramentas fundamentais que são usadas por compositores de trilhas sonoras para filmes, inclusive Williams. Porém, Williams também utilizou de técnicas do movimento modernista: por exemplo, Mars, the Bringer of War (que possui um ritmo militar), um dos sete movimentos que compõem a estrutura da obra musical The Planets, de Gustav Holst, serviu de inspiração para dois temas musicais de Star Wars: The Imperial March e Imperial Attack.
São exemplos da abertura da música clássica – que o compositor promoveu – para novas formas culturais (o cinema). Os “apocalípticos” se baseiam em critérios rígidos para decidir o que é música clássica e o que não é. Todavia, a música evolui e novos conceitos acerca da música clássica vão se formando. A tese que afirma que a música de cinema de Williams jamais pode ser considerada música clássica se baseia numa definição aristocrática e defasada.