Em defesa do hip-hop

Em vídeo transmitido ao vivo nas redes sociais nesta terça-feira (11), o cantor Ed Motta afirmou que “qualquer um que escuta hip-hop é burro”.

“Eu não sou branco, porra. Eu sou preto. Mas eu represento o que a raça tem de mais sofisticada. É burro qualquer um que ouve hip-hop. Qualquer um, sem exceção”, disse o músico. “O que alguém inteligente ouve? Jazz, música clássica”.

Motta não expressou nenhum argumento que confirme a sua tese. Foi uma manifestação polêmica, um ataque gratuito apresentado como se fosse uma verdade autoevidente. O intuito, aparentemente, foi ter repercussão através de declarações que possam gerar indignação.

O que provavelmente “fundamenta” a crítica de Motta é o senso comum ou o estereótipo que entende o hip-hop/rap meramente como música recheada de “palavrões” e de “apologia à violência e ao crime”. Assim, rappers seriam incapazes de produzir músicas refinadas. É como se vulgaridade e sofisticação fossem mutuamente excludentes. Mas não são. A história da arte está repleta de casos em que o vulgar é utilizado de forma sofisticada. Na literatura nacional, um dos exemplos mais proeminentes é o falecido escritor Rubem Fonseca, que conseguia combinar ambos com maestria.

E no hip-hop também há exemplos emblemáticos em que a sofisticação e o vulgar coexistem brilhantemente. To Pimp a Butterfly, obra-prima do grande rapper Kendrick Lamar, pode ser considerado como um exemplo assaz adequado para contrapor a fala de Ed Motta. Esse disco foi amplamente elogiado, inclusive por músicos de jazz.

“[To Pimp a Butterfly] mudou a música e ainda estamos vendo os efeitos disso”, disse o saxofonista Kamasi Washington, de acordo com o site Highsnobiety. “Isso significou que a música intelectualmente estimulante não precisa ser underground. Isso simplesmente não mudou a música. Isso mudou o público”.

Kamasi é um músico de jazz que colabora com Lamar. Isso demonstra como o raciocínio de Motta o impede de enxergar as possibilidades do hip-hop, que pode incorporar diversos gêneros musicais, inclusive jazz, para se produzir um disco sofisticado. To Pimp a Butterfly utiliza do jazz, assim como do soul e do funk. As letras são recheadas de crítica social, comentários políticos e até abordam problemas emocionais, como a depressão.

Quem escuta um disco multifacetado de hip-hop, como esse, é “burro”? E quem o cria também é? Motta acha que Kamasi Washington - que segundo sua falácia, seria “sofisticado” por tocar jazz - é desprovido de inteligência?

Além de não conseguir enxergar o caráter complexo e o ecletismo do hip-hop, Ed Motta, com a mente embebida de lugares-comuns, não percebe as múltiplas perspectivas desse gênero e subcultura. Ainda que considerássemos o vulgar e o sofisticado como características que se anulam, há subgêneros que desmentem plenamente o chavão que reduz o rap a “música de violência, mulheres e dinheiro”.

Volto à citação de Kamasi para pedir atenção ao que ele diz sobre o underground, porque vai além da música hip-hop. Nota-se que ele defende a tese de que “músicas intelectualmente estimulantes” seriam mais frequentemente produzidas no cenário underground. Nesse argumento, está embutida o ideia de que há mais liberdade no underground, pois é um contexto em que há independência e pouca preocupação com o lucro, o que permite maior possibilidade para músicas mais refinadas. Enquanto a intenção comercial do mainstream limita essa capacidade.

O senso-comum reproduzido por Ed Motta ataca uma versão caricaturada do que o hip-hop apresenta no mainstream. Isso implica que ele ignora o que esse mesmo gênero produz no underground.

Poderia citar vários exemplos, mas mencionarei só um rapper underground que desmascara, na prática, o estereótipo: o músico de Nova York Aesop Rock. Ele é conhecido por suas letras complexas, bem elaboradas e inteligentes. Um estudo de 2014 analisou o vocabulário de diversos rappers e comparou com o de William Shakespeare e Herman Melville. O resultado: Aesop teve o vocabulário mais amplo de todos os rappers. E ele ainda superou o dramaturgo inglês e o autor de Moby Dick.

Sabe-se que um vocabulário vasto é indício de alta inteligência. Então, quem escuta Aesop Rock seria realmente burro?

Em resumo, as falas de Ed Motta se baseiam em estereótipos que são desmontados pelos fatos. O hip-hop, como Lamar e Aesop comprovam, pode ser sofisticado, intelectualmente interessante e com relevante significado cultural.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 13/06/2024
Reeditado em 14/06/2024
Código do texto: T8085069
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