AS LEIS - Platão - Livro II - trechos traduzidos e comentados
Tradução de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”.
Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei que devia tentar esclarecer alguns pontos polêmicos ou obscuros demais quando se tratar de leitor não-familiarizado com a obra platônica. Quando a nota for de Azcárate, haverá um (*) antecedendo as aspas.
“é fácil encontrar no Egito obras de pintura e escultura feitas há 10 mil anos (quando digo 10 mil anos, entende literalmente!) que não são mais nem menos belas que as que se executam hoje, pois que os artistas utilizam as mesmas regras desde sempre.”
“Se, como eu dizia, houvesse alguém hábil o bastante para conhecer o que há de perfeito neste gênero, esse alguém deveria decerto elaborar uma lei e ordenar sua execução, persuadido de que o gosto e o sentido do prazer, responsáveis por inclinar os homens, sem cessar, a invenções e inovações na música, não teriam nesta sociedade força o suficiente para abolir os cânones vigentes e os modelos já consagrados, sob o estapafúrdio pretexto de <serem demasiado antigos>.”
“ATENIENSE – O efeito natural da alegria, não é causar uma certa comoção, que não permite permanecer em repouso?
CLÍNIAS – Sim.
ATENIENSE – Em tais momentos não se encontram os jovens dispostos a dançar e cantar? Quanto a nós, como somos já avançados em idade, cremos apropriado a nossa dignidade permanecer serenos e tranqüilos, observando e seguindo, não sem prazer, é verdade, os jogos e festejos juvenis, vendo com pesar a debilitação de nossas forças, propondo, para compensá-lo, prêmios para os que despertem com mais vigor em noss’alma as lembranças de nossos bons tempos.”
“O abuso contrário, autorizado noutro tempo na Grécia, como hoje o está na Sicília e na Itália, que dá o arbítrio desses concursos culturais somente à multidão reunida na praça pública, despojando os juízes de sua autoridade, e que declara vencedor aquele para quem levantaram-se mais mãos, produziu duas más conseqüências: a primeira é fazer minar a própria qualidade dos autores, que se adaptam ao mau gosto imperante, do que deriva que o povo educa a si mesmo; a segunda é perverter o prazer do teatro, que em vez de depurar o gosto da multidão mais e mais, através da exibição de costumes mais elevados que os do populacho, entre os personagens das peças, promove o exato contrário.”
“CLÍNIAS – Estrangeiro, não falas nada mais belo nem mais sólido que a verdade, mas creio ser quase impossível fazer a lei justa penetrar nos espíritos.
ATENIENSE – Pode ser que assim o seja. Porém, se um dia conseguiram que as pessoas cressem na fábula de Sidônio Cadmo, absurda como é, e em mil semelhantes, tudo é possível.
CLÍNIAS – Que fábula, estrangeiro?
ATENIENSE – A que diz que dos dentes dum dragão plantados na terra nasceram homens armados. Não há outra prova tão evidente a um legislador da imensurável credulidade da juventude. A única tarefa do legislador nesse momento¹ deve ser a de encontrar o equilíbrio entre a felicidade do cidadão e o seu grau de comprometimento para com o Estado. Porque não é bom ser um crédulo inveterado nem um cético egoísta, um escravo ou um libertino. Se se encontra uma linguagem uniforme para ser usada nas leis, nos cantos, nos discursos e nas fábulas, e que satisfaça os cidadãos a meio deste caminho de extremos, só se terá a ganhar. A mentira que visa a um fim justo é melhor do que a verdade que visa a um fim injusto.”
¹ O livro d’As Leis é todo ele sobre a fundação concreta (fabulosa de acordo com dados históricos, mas concreta no sentido da ficção platônica) dum novo Estado, sendo o Ateniense uma espécie de conselheiro jurídico da primeira constituição desta polis, ainda por elaborar. Diferente d’A República, em que se descreve o ideal (quiçá) inalcançável da perfeição social humana, aqui os debatedores trabalham com o que têm em mãos (cidadãos corrompidos, tempos de crise e decadência). Muito embora para o leitor contemporâneo as exigências ascéticas de Platão, como veremos, pareçam tão distantes da realização quanto o mais utópico dos Estados...
“CLÍNIAS – (...) A idéia de um coro de anciãos consagrado a Dionísio é tão singular que de um primeiro momento não é possível ao espírito se acostumar a ela.”
“ATENIENSE – Não é certo que, à medida que se envelhece, vai-se desgostando do canto, e não é fácil ver-se disposto a cantar, de modo que esta ação soa repugnante, e que, quando é de precisão fazê-lo, quanto mais ancião ou virtuoso se é, mais vexante parecerá tudo isso?”
“E não proibiremos, mediante lei, o uso do vinho aos jovens até uma idade de 18 anos, fazendo-os compreender que não é conveniente combater fogo com fogo, um fogo que sem a ajuda do álcool já devora seu corpo e sua alma antes da idade do trabalho e das fadigas, temerosos que nós estamos e que nós somos, da exaltação que é o natural da juventude? Permitiremos, pelo menos, chegada a idade prescrita, que bebam moderadamente até a casa dos 30, certificando-nos de que se abstenham de toda classe de libertinagem e excesso. Somente aos 40 anos é que poderão entregar-se ao gozo dos banquetes e convidar Dionísio, para que venha com os demais deuses participar de suas festanças e orgias”
“ATENIENSE – Qual seria a música que conviria a homens divinos? Será a dos coros?
CLÍNIAS – Seria pouco recomendável empregar, seja para nós, seja para os cretenses ou espartanos, outros cantos que não os que houverem sido ensinados nos coros, que é aos que estamos acostumados.”
“Vossa juventude se assemelha a uma manada de potros, que se deixa conduzir por um guia em comum para pastar ao campo. Os pais não têm entre vós o direito de separar seus filhos da companhia dos demais, mesmo os pais bravios e selvagens; nem de educá-los em casa, contratando um professor particular, nem de conduzir sua educação de modo gentil ou suave, e usando dos demais meios adequados à educação dos filhos.”
“Não se deve dar ouvidos aos que avaliam a música pelo critério do prazer; nem devemos julgar digna de consideração esta reflexão: devemos procurar somente o belo.” “Onde está toda a dificuldade de avaliar a música? Ora, de todas as imitações (artes), é a mais elevada. Por isso mesmo é a que exige mais cuidado e atenção. O erro neste assunto seria muito funesto, porque transcende os costumes, ao mesmo tempo que é dificílimo percebê-lo. Os poetas jamais poderão ser tão hábeis em sua arte quanto as próprias Musas.” “Jamais serão as Musas capazes de mesclar gritos de animais, vozes humanas e sons de instrumentos, nem empregar esta confusão de sons a fim de expressar uma coisa única; já nossos poetas, vês, confundem e mesclam todas estas coisas. Sem qualquer critério, gosto ou princípio. A verdade é que mereciam a troça de todos aqueles que, segundo Orfeu, receberam da natureza o sentido da harmonia.”
“em tudo isso há a mais completa falta de gosto, sobretudo nessa fixação por acumular sons parecidos com gritos de animais com uma extrema rapidez e sem se deter; não pode ser senão o resultado de uma mania bárbara e de um verdadeiro charlatanismo, tanto empenho em tocar o alaúde e a flauta para tudo, exceto acompanhar a dança e o canto!”
“ATENIENSE – (...) Numa assembléia assim, reinará o tumulto, que vai aumentando à medida que se bebe; inconveniente que desde o princípio nos pareceu inevitável nos banquetes de nossos dias, tendo em vista tudo que neles se passa, e que tu bem conheces.
CLÍNIAS – Creio que é absolutamente inevitável!”
“Diz o vulgo que Hera, madrasta de Dionísio, privou-o do juízo e da razão; este, para se vingar, inventou as orgias e todos os bailes extravagantes, sem esquecer de nos presentear com o vinho.”