A música e a mulher negra
A música sempre esteve presente na vida humana. Desde as tribos e clãs, o homem se deleitava ao som da “batucada”. Hoje em dia, ela encontra-se mais refinada pela presença de instrumentos modernos ou rebuscados que eclodem melodias que se combinam com letras reflexivas ou grotescas, as quais imergem na alma humana deixando um rastro emocional e cultural.
Não se pode negar que as letras das músicas carregam um grande poder persuasivo, pois através da repetição gera-se a naturalização. Ao cantar ou ouvir uma canção ativamos estados emocionais, os quais podem variar num espectro de tristeza a euforia. Quando desencadeados estes sentimentos em várias pessoas geram-se movimentos sociais. Todavia não é somente ritmos típicos de protesto social que carrega uma ideologia, pois como diz o ditado “toda palavra dada não volta vazia”. A música é um tipo de linguagem e como linguagem se compara a um contêiner no qual o cérebro se encarrega de examinar superficialmente ou minuciosamente.
A música faz parte da cultura de um povo e por isso está intimamente ligado a ele. Mesmo que uma população mude de seu local de origem ela irá carregar consigo toda uma história evocada em suas músicas. Exemplo disso é o caso dos africanos que trouxeram para o Brasil os cantos de capoeira e adaptaram o reggae em axé, o qual hoje é sucesso principalmente entre os baianos. Dada a esta importância e à influência da música na sociedade deve ser dispensado a ela um cuidado especial.
Atualmente, a discussão em voga em relação ao cenário musical é a questão da mulher no que tange à sexualidade. Quase sempre posta como objeto de desejo e não como o sujeito deste, ela é ora enaltecida, ora denegrida. Atribui-se estas posições aos papéis sociais desempenhados por ela na sociedade e às profundas mudanças ocorridas nesta. É de chocar o confronto de ideias presente na comparação entre as músicas “Ai! Que saudades da Amélia” de Mário Lago e de Ataulfo Alves e “Desconstruindo Amélia” de Pitty. Enquanto que a primeira diz: “ Ai meu Deus que saudade da Amélia/Aquilo sim é que era mulher/Às vezes passava fome ao meu lado/E achava bonito não ter o que comer” (LAGO & ALVES, 1942) – A canção da roqueira Pitty extravasa dizendo: “A despeito de tanto mestrado/Ganha menos que o namorado/ E não entende porque.../ Depois do lar, do trabalho e dos filhos/Ainda vai pra night ferver (PITTY, 2009). Esta analogia é o mais claro retrato do antes e depois da emancipação da mulher. De submissa a dona de si, de dependente a provedora, de simples a culta, de recatada a ousada.
Especificando a questão ao caso da mulher negra, vê-se refletido o estigma, o racismo e exclusão existentes ao longo de nossa história internacional e transcendentemente brasileira nas melodias. Quase nunca enaltecida ou posta como alvo de canto de amor, à mulher negra foi concedido, por muito tempo, um lugar de invisibilidade. Quando citada nas canções lhe cabe um lugar de marginalização. Um exemplo nítido disso é a música “Fricote” de Luis Caldas: Olha a nêga do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na praça do tubo/O negão começa a gritar/Pega ela aí/pega ela aí/Pra quê?/Pra passar batom/De que cor?/De violeta/Na boca e na bochecha” (CALDAS, 1985). Apesar desta música não ser contemporânea, não poderia deixar de ser citada aqui, pois ela representa toda uma época de banalização de preconceito e machismo que deixou marcas até hoje. O caso do “cabelo ruim” é algo bastante atual e que está sendo descontruído agora pela onda de empoderamento feminino lançado pelos movimentos negro e feminista. Quantas mulheres não alisaram os cabelos para se sentirem atraentes aproximando-se de um ideal branco?! A questão da sexualidade debochada, tida por grotesca, envoltas por mitos pejorativos não se restringe a tal música. A negra de hoje ainda sofre por ser associada exclusivamente ao sexo em detrimento do amor, devido à construção social do falso conceito deste sentimento ser restringido à mulher branca.
A sexualidade é algo muito complexo para ser reduzida ao encontro vazio de corpos. Muitos tabus ainda restam para ser caídos por terra. A música como parte constituinte da arte humana contribui muito para isso. Atualmente, ainda que restrito, vê-se no mercado da música cantoras negras evocando sexualidade metafísica nas letras de suas músicas. É a mulher sujeito de desejo do amor. Este agora é expresso em sensualidade e sexualidade sublimada e latente para as pessoas sem exacerbação. A música “Dimonds/Diamantes” da cantora afrodescendente e norte-americana Rihanna é o canto de uma mulher para o ser amado. Nela, cantora e compositora, enunciatária e eu-lírico se misturam numa sensualidade filosófica: “Eu logo soube que nos tornaríamos um só/ Oh, bem no começo/ À primeira vista eu senti a energia dos raios de sol/ Eu vi a vida dentro do seus olhos...” (Rihanna, 2012) Uma mulher afrodescendente fazendo sucesso já é novidade, uma sexualidade não exagerada, não promíscua, por incrível que pareça, também é novidade. Nota-se aí toda uma conjuntura social em movimento: a mulher negra passando de uma posição de passividade à de protagonista, a desvalorização do físico sendo substituída pelo enaltecimento de qualidades abstratas, o reconhecimento da sexualidade como um todo indivisível.
Com certeza é bom saber e poder ouvir músicas como a da Rihanna, mas é pouco motivador tomar conhecimento da quantidade reduzida das mesmas, dada tamanha importância. Através delas pensamentos são reformulados e identidades reafirmadas, pois tais músicas soam como grito de independência feminina e de adeus a uma ideologia retrocessa e desumana. É a mulher negra saindo dos subúrbios e adentrando a cultura de estrato social dominante.