Chocando a burguesia
Tradução do artigo de Roger Scruton (https://spectator.org/39316_shocking-bourgeoisie/)
Em meados do século XIX, os burgueses estavam aparentemente em todos os lugares. Você os encontrava nos teatros e restaurantes, nas igrejas e clubes, nas praias e barcos, nas florestas e parques, muitas vezes caminhando de braços dados, usando roupas respeitáveis e coroados por chapéus ridículos. Eles mandavam seus filhos para escolas respeitáveis, tiravam férias respeitáveis e trabalhavam em limpos, porém árduos, trabalhos. Tinham bens, móveis e imóveis, e pareciam horrorizados com os radicais e socialistas que ameaçavam despejá-los. Eles acreditavam no casamento e na família, na decência, na vida doméstica e no respeito às leis. Agora eles olham para nós das figuras de cartões postais com olhos que são, a um tempo, orgulhosos e tímidos, mantendo a ordem moral mesmo quando navegavam num mar revolto. Nós vislumbramos aquele mundo nos interiores sufocantes de Vuillard, nas "fêtes galantes" de Renoir, nas cenas de pic-nic de Seurat, e é um mundo seguro e domesticado, e também um mundo tingido pela tristeza romântica.
Aos olhos de seus observadores intelectuais, no entanto, os burgueses eram criaturas exóticas e simbólicas, o assunto de teorias elaboradas e contos de fadas. Marx inventou um papel no mundo-histórico para eles, Flaubert começou a desconcerta-los e Matthew Arnold denunciou-os como “classe de Filisteus”. Eram a presa perfeita para a sagacidade, a exuberância e a iconoclastia e por cem anos após o "Manifesto Comunista" de 1948 eles preencheram uma necessidade evidentemente dramática. Para o artista boêmio os burgueses eram visíveis, chocáveis e obviamente maus. Eles justificaram a arte como nenhuma classe antes havia justificado, sendo os alvos indefesos do abuso e da sátira.
Nos últimos 50 anos, no entanto, os burgueses têm deslizado suavemente para longe. Aqueles que parecem adequar-se ao papel como proprietários não se vestem como deveriam e não sustentam mais aquele tipo de valores domésticos. A frequência à igreja caiu, bem como as visitas aos teatros e restaurantes. Parques e praias estão povoadas por gente que não mostra respeito algum pelas roupas ou pelas maneiras burguesas, e a idéia de que existem valores burgueses ligados ao casamento, ao lar e à família, tem só uma remota chance de sobrevivência em um mundo onde mais e mais pessoas vêm o casamento como um fardo, filhos como uma chatice e a propriedade como algo que não se deve compartilhar.
Em tais circunstâncias, o intelectual iconoclasta, treinado para "épater le bourgeois", sofre com a falta de alvos. A quem ele pode ofender no mundo pós-burguês? E como pode ele mostrar a originalidade e a liberdade de seu pensamento quando não há costumes, normas, maneiras e códigos de etiqueta para ofender? Claro, ele pode fazer algo mais ousado, como expor um urinol numa galeria de arte. Mas ele será assombrado pelo medo de que alguém o tenha feito antes dele e, em todo caso, as galerias de arte são freqüentadas por pessoas tão imperturbáveis quanto ele mesmo.
O desaparecimento da burguesia levou desse modo à crise nas artes. Como podemos rastrear os derrotados remanescentes da classe filistéia para perturbá-los com a prova de sua irrelevância? Teatros, galerias, restaurantes e espaços públicos, todos oferecem impecáveis atrações pós-modernas, endereçadas a pessoas sem preconceitos. A televisão foi rebaixada para além do horizonte mentalidade burguesa e mesmo as igrejas têm rejeitado os valores familiares e as virtudes matrimoniais. Assim, sem a burguesia, o mundo da arte se vê privado de um alvo e condenado a repetir desgastados gestos de rebeldia para uma audiência que há muito perdeu a capacidade de se sentir ultrajada.
Nem tudo está perdido, todavia. Há um último reduto onde se pode encurralar a burguesia e cuspir-lhe, e este lugar é a ópera. Os que acreditam nos valores familiares e no casamento à moda antiga são corações românticos que adoram assistir essas maravilhosas histórias de intriga, traição e reconciliação, nas quais o amor entre homem e mulher é exaltado a cumes que ele nunca pode alcançar na vida real e tudo isso apresentado através de uma música de parar o coração de cenas mágicas que nos levam, por três encantadas horas, para um mundo de sonhos. O amor de Siegfried por Brünhilde, ferido pela traição inconsciente; a inocente paixão de Butterfly construída sobre o auto-engano como um anjo numa tumba; o desejo de morte de Grime, racionalizado como um anseio pelo amor materno de Ellen — estas são idéias dramáticas que nunca poderiam ser realizadas através de palavras, mas que incendeiam nossos corações através da música.
É surpreendente que nossa sobrevivente burguesia, cercada como está por uma cultura de desrespeito e dessacralização, seria tão atraída para a ópera? Após uma performance de Katya, Pelléas, La Traviata ou Figaro, eles vão para casa maravilhados com as paixões apresentadas no palco, por criaturas tão pouco divinas como eles mesmos. Eles viajarão milhas para sentarem-se diante de seus contos de fadas favoritos e depois dirigir depois de algumas horas para casa cantarolando. Eles pagarão $200 por um lugar medíocre para ouvir sua favorita prima donna e aprenderão de cor as árias que nunca se cansam de ouvir ao menos superficialmente. Pegue qualquer performance de um clássico operístico em qualquer lugar do mundo e encontrará, sentado em um estreito confinamento, imóvel e devoto pelo espaço de três horas, o agregado remanescente da burguesia, inocente, cheia de expectativas e disponível para ser chocada.
A tentação é irresistível. Dificilmente um produtor hoje, confrontado com uma obra prima que, de outro modo, poderia deleitar e consular tal audiência, pode conter o desejo de dessacralizar. Quanto mais excelsa a música, mais aviltante a produção. Eu deparei-me com tudo o que se segue: Siegfried com bermuda de colegial cozinhando uma espada em uma cantina móvel; Mélisande escondida em um spa, com Pelléas sadicamente amarrando-a à parede pelos cabelos; Don Giovanni ficando feliz com facilidade no final da ópera epônima enquanto inexplicáveis demônios entram no palco, cantam um coro sem sentido e saem; Rusalka em uma cadeira de rodas da qual ela olha fixamente para uma bola numa piscina; Tristão e Isolda em barco dividido por um muro de tijolos, cantando vagamente sobre um amor que dificilmente diz respeito a eles já que são invisíveis um ao outro; Carmen tentando em vão ser o centro da atenção erótica enquanto um coro seminu copula no palco; “O rapto do Serralho” de Mozart passado em um bordel de Berlim; “Un ballo in maschera” de Verdi com um elenco agachado em banheiros de modo a esvaziar suas entranhas — para não falar na rotineira hitlerização de qualquer ópera, de Fidelio a Tosca, que pode ser espremida num uniforme nazista. Wagner é sempre mutilado sem misericórdia, para que esses burgueses equivocados não caiam em sua sedutora mensagem política; e com relação a Madame Butterfly, que oportunidade para voltar ao bombardeio americano de Nagasaki!
Nem todos os teatros de ópera são culpados do sacrilégio que efetivamente destruiu os teatros publicamente financiados na Grã-Bretanha e na Alemanha. Aqui e ali na Itália as coisas são feitas da maneira própria, ou seja, apresentando o drama como a música o requer. E um teatro acima de todos os outros merece o nosso louvor por sua fidelidade à inspiração artística original, e este é o Metropolitan Opera de Nova Iorque, que prima pela perfeição e freqüentemente a atinge. Sarcásticas produções pós-modernas invariavelmente abafam o impacto musical, prevenindo os cantores de identificarem-se com os seus papéis. Mas quando, como acontece freqüentemente, uma performance é transmitida para do Met para todo o mundo — incluindo para nós burgueses inanes de ópera na Grã-Bretanha — é muito provável que o resultado seja uma experiência musical do mais alto nível, com cantores completamente assimilados ao drama e a orquestra se movendo com profunda simpatia. É claro, o Met tenta obter os melhores cantores e tem, em James Levine, um grande maestro capaz de encontrar o caminho para o coração da música. Mas esses dois fatores nunca poderiam garantir uma performance expressiva quando o drama está sendo abertamente ridicularizado no palco. Os amantes da ópera em todo o mundo devem ser gratos, então, por haver ao menos um lugar que respeita seus sonhos e não vê a ópera como um caminho para destruí-los.
ais pensamentos vêem vivamente à mente ao ouvir a verdadeiramente grande produção no início deste ano da Lulu de Berg, com Fabio Luisi conduzindo a orquestra e Marlis Petersen maravilhosamente no comando do papel principal. Se alguma vez houve uma bofetada operística na cara dos valores burgueses, foi com essa obra, que Berg deixou inacabada, e o libretto da qual ele tirou dos horríveis dramas de Lulu de Wedekind. Tais dramas foram escritos para fazer caírem as escamas dos olhos da Alamanha guilherminista. Mas eles também deleitavam pela visão obsessivamente sexual do autor sobre as mulheres em geral e sobre a psicopata Lulu em particular. Graças à maravilhosa produção, o brilho visual da qual era perceptível mesmo para nós na zona rural de Wiltshire, os cantores fizeram uma apresentação do tipo que nunca poderia ser reproduzida em um estúdio, verdadeiramente esbofeteando-nos a face de um modo que foi, no fim, não humilhante, mas genuinamente perturbador. Então, tendo-a esbofeteado por um tempo, Berg pega a face burguesa pelas orelhas e a arrasta até a sarjeta para que possa contemplar as formas mais baixas da vida humana. “Ali, mesmo com a graça dos valores familiares, todos vocês vão”, ele nos diz. E nós o ouvimos envergonhados.
O que deveríamos fazer dessa ópera agora? É apenas uma peça de época, outro exemplo do cansativo niilismo que sufocou a Europa central no período entre as duas guerras, como as pinturas de cabaret de Georg Groz, os dramas de Brecht, ou a arquitetura inumana de Walter Gropius? Ou seria o oferecimento a Lulu e a pessoas como ela a esperança de alguma redenção, refazendo sua vida egoísta como algo valoroso, mesmo no absurdo assassinato final nas mãos de Jack o estripador? Berg certamente adotou a segunda opção, já que ele compôs para Lulu um leitmotif que é sem dúvida a maior e mais terna melodia dodecafônica que existe. E, nas marcações meticulosas da partitura, ele tenta criar uma impressão de ordem absoluta, ainda que apenas uma ordem artística, na vida aparentemente caótica que inunda o palco. Ele estava completamente persuadido de que poderia redimir a vida mais sórdida através da música, assim como Wagner tentara redimir as velhas decências burguesas em Die Meistersinger. E quem, exceto um burguês, se dedicaria a tal tarefa?